A percepção franciscana acerca do homem em suas fontes primitivas

Neste Artigo, Frei Gilberto Sales descreve a percepção a cerca do homem de Francisco de Assis acreditando que com o mesmo, se tem o início de uma espécie de humanismo embrionário.

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30.03.2023 11:37:23 | 7 minutos de leitura

A percepção franciscana acerca do homem em suas fontes primitivas

       I. A percepção franciscana acerca do homem em suas fontes primitivas


       É verdade que Francisco de Assis não foi alguém profundamente versado nas ciências de seu tempo, nem mesmo um teólogo renomado e conhecido nos círculos escolásticos, com uma produção literária vasta e completa. Mesmo assim, ao ler atentamente seus poucos escritos, ou observando os testemunhos de seus companheiros de primeira hora, pode-se perceber que o pobrezinho de Assis possuía um olhar profundíssimo acerca das realidades que o cercava. Francisco não era apenas um poeta, um cantor lúdico das belezas do mundo, ou um místico apartado das coisas da terra, com os olhos voltados apenas para o céu. O santo era um eficiente conhecedor das realidades humanas e naturais. Ainda que o termo ainda não estivesse cunhado em sua época, pode-se afirmar que com São Francisco se tem o início de uma espécie de humanismo embrionário.


       O santo, em todos os momentos de sua vida, ao longo de todos os encontros e interações que estabeleceu, sempre salientou a grande dignidade que todas as criaturas possuem. Sua sensibilidade não percebia nada como algo desimportante, ou sem valor. Ele percebia que todas as coisas são fruto, são dom das mãos generosas do Pai, até mesmo o filho de Deus, o redentor, é ofertado cotidianamente por Deus para a salvação e conversão dos pecadores. É essa verdade fundamental que Francisco faz questão de colocar em sua primeira admoestação. Esta que não aponta unicamente para o culto eucarístico, mas estabelece uma relação profunda entre os momentos da vida de Cristo. A natividade, a paixão e cruz e a Eucaristia são manifestações cotidianas de um Deus que quer dignificar o Ser humano com sua presença. Por isso ele afirmava:


Eis que todos os dias, Ele se humilha, assim como quando desceu do trono real para o útero da virgem, cada dia vem a nós sob aparência humilde; cada dia desce do seio do Pai sobre o altar, nas mãos do sacerdote. [1]


       Nisto contém um silogismo que vai impulsionar a compreensão de Francisco, determinado sua conduta em relação a todas as coisas. Pois se tudo provém do mesmo Pai, pode-se concluir que todas as coisas estão ligadas por um laço de fraternidade, ou seja, tudo é irmão, irmã. Atestando isso, Tomás de Celano, seu primeiro biógrafo, relata:


Chamando toda criatura de irmã e, de uma maneira especial, por ninguém experimentada, descobre os segredos do coração das criaturas, porque, na verdade, parecia já estar gozando da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. [2]


       É interessante notar que esta percepção não é fruto de um espontaneísmo pueril, nem mesmo de um espiritualismo vazio. É, antes, produto de uma observação integral e integrante, que assumida na experiência concreta, o faz entender profundamente a tênue teia relacional que envolve toda criação. Francisco compreende que tudo foi criado por Deus para uma relação fraterna e não para simples conexões utilitaristas.

       

       Seu pensamento, portanto, é um arreganhar de perspectivas em plena idade média. Afinal de contas, vale lembrar, que até então se percebia o mundo como um lugar ruim, pois era o cárcere daqueles que buscavam a Deus. Por essa razão, os homens utilizariam do mundo apenas como um lugar de expiação de suas culpas, ou vale de lágrimas que aparece na oração medieval da Salve Rainha. Nesta perspectiva, a vida religiosa era a opção para aqueles que “queriam fugir do mundo”. Além disso, o sistema feudal se baseava nas relações de utilidade que se podia estabelecer com as coisas, a terra, a mão de obra dos vassalos. O senhor feudal cedia o uso de porções de suas propriedades, desde que o vassalo se comprometesse em tornar a terra produtiva, retribuindo porcentagens de suas produções, e desde que ele se integrasse como soldado em eventuais guerras que ameaçasse o feudo.


       Diante de tudo isso, como núcleo central, está a concepção de homem que são Francisco intui. Ele não compreende a humanidade de cada indivíduo como um problema, ou um obstáculo a ser superado. Para ele o que impede que o homem encontre sua emancipação completa é o pecado, mas para isso têm-se sempre a graça de Deus. A humanidade, o homem, é um espaço teológico por excelência. Nele se concretiza a teofania, por isso é o homem o Ser com maior dignidade que pisa soba terra.


       A antropologia franciscana se fundamenta, portanto, numa visão positiva das realidades constitutivas. Essa ótica encontra sustentação na humanidade do próprio Cristo. Ora, se Deus quis assumir a carne humana, quis assumir a materialidade do mundo em Jesus, confere um grau máximo de dignidade à humanidade. É um pensamento lógico, como aludido anteriormente. Se “todos os dias Ele se humilha, como quando desceu do trono real para o útero da virgem”[3], todos os dias Cristo toca a humanidade e a santifica. É, desta forma, a humanidade de Cristo que Francisco contempla quando olha para o próprio homem. Este ponto de observação está carregado de um verdadeiro valor sacramental, porque a existência do homem e de todas as criaturas estão carregadas de sentido, pois sempre remete ao criador e é “expressão sacramental da palavra eterna”.[4]


       Em seu testamento, Francisco assim relembra:


(...) como estivesse em pecado, parecia-me demasiadamente amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu a eles e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que parecia amargo, converteu-se em doçura da alma e do corpo(...). [5]


       Esta passagem carrega um sentido profundo, afinal de contas, Francisco coloca o início de sua vida no Espírito quando começa a fazer misericórdia com os leprosos. É sabido que desde tempos imemoriais, as pessoas acometidas por tal enfermidade eram completamente excluídas do convívio social. Eram obrigadas a andar com uma sineta, quando encontravam alguém pelo caminho, precisavam tocá-la com força e gritar que eram leprosas. Tais pessoas reviravam as sobras e o lixo para encontrar algo para comer. Eram tidas como animais, como “aqueles que foram chagados por Deus”. Viviam despojadas de tudo, de sua identidade, de sua dignidade.


       Quando Francisco afirma que “o Senhor lhe conduziu para o meio deles”, quer comunicar que conversão autêntica significa ir ao encontro de todos, sem distinção, sem separação. Falar disso não significa dizer que conversão é o mesmo que sentir pena daqueles que são marginalizados. Significa olhar nos olhos do outro, enxergar suas potencialidades, seu valor, percebendo que aquele também é filho de Deus, sua imagem. Ele ainda completa que fez misericórdia com eles. A palavra misericórdia, em sua raiz latina, significa sentir com o coração, ou mesmo um movimento do coração. Assim, fazer misericórdia é ir ao encontro, buscar o outro de coração aberto.


       Por essa razão o santo conclui afirmando que aquilo que era amargo se transforma em doçura. Ou seja, se antes ele percebia os marginalizados como escória, agora são pessoas humanas, dotadas de dignidade. São irmãs.


       Neste sentido, outra passagem da vida de são Francisco corrobora com isso:


Certa vez, num eremitério dos frades, que ficava em cima de Borgo San Sepolcro, ladrões vinham, de vez em quando, pedir pão aos frades. (...) alguns frades diziam: “não é bom dar-lhes esmolas, sobretudo porque são ladrões e fazem tantos e tão grandes males às pessoas”. (...) Disse-lhes Francisco: “se fizerdes como vos vou dizer, confio no Senhor que lucrareis as suas almas”. (...) Ide a floresta e chamai-os dizendo: “irmãos ladrões, vide a nós, porque somos irmãos e vos trazemos pão e vinho” (...) [6]


       O hagiógrafo diz no início desta narração que mesmo recebendo eventuais esmolas dos frades, os ladrões continuam fazendo o mal com suas práticas. Por esta razão, os frades resistiam em oferecer auxílio. A atitude de Francisco é outra, ele entende que a partir do momento que os ladrões se sentirem amparados integralmente pelos religiosos, podem mudar de vida. Assim, uma atitude parece essencial, pois o santo pede que o frades não chamem os malfeitores pelo adjetivo pejorativo ladrão, mas os chame irmãos. Fazendo isso, os homens não seriam mais tratados como marginais, como gente de secunda categoria, mas como alguém próximo. Chamar o outro de irmão significa trazê-lo para o centro, significa tratá-lo como igual, como alguém que tem importância, que possui dignidade.


       Na conclusão da passagem, o autor relata que pelo exemplo e testemunho de proximidade dos frades, os ladrões mudam de vida, entrando alguns até para a Ordem.


       É interessante que Francisco entende que pelo exemplo, pelo testemunho se chega ao coração do outro, constituindo fraternidade. Isto é uma antropologia positiva, que traduz em humanismo.



       I. A relativização da dignidade humana ao longo da história e a possibilidade de um novo humanismo. “O amargor que vira doçura


O franciscanismo é, antes de tudo, um modo de viver e interpretar as relações dos homens, seja com ele mesmo, com os outros, com a natureza com as coisas, com a cultura, com Deus. O franciscanismo, como se pode notar, é uma antropologia profundamente relacional. [7]

       

       Este pensamento de frei Miguel Angel, OFMCONV, nos insere no âmago da questão: o humanismo franciscano, a antropologia franciscana, pode tornar-se uma chave de leitura importante para analisar a crise civilizatória que toda humanidade está mergulhada há muito tempo, porém que vem se acentuando nos últimos tempos, além de ser uma opção, uma ferramenta eficaz para superar tudo isso.


       II.2 A possibilidade de um novo Humanismo.


       Assim comenta Angel:


Toda vida para Francisco, as criaturas não são objetos de compra e venda, são companheiros no grande culto da criação de Deus. Abrasado pelo fogo divino, não podia ocultar ao exterior o ardor de seu espírito. Ébrio do espírito, impõe um modo apaixonado de amar a vida.  [8]


       Ou seja, a percepção de Francisco ultrapassa a visão mercadológica do mundo pós-moderno. As pessoas não são vistas como número, nem como mão de obra, mas como aquilo que realmente são: filhas do mesmo criador, participantes uma mesma vida. E é justamente este amor a vida a condição eficiente para a mudança dos paradigmas. Se o secularismo, tão presente atualmente, prega a existência puramente biológica, sem espaço para a transcendência, a ótica franciscana convida para um salto muito mais profundo no Ente humano, para aí encontrar toda riqueza que esconde. Tal salto só é possível quando os homens desabrocharem para uma vida apaixonada. Quando os homens se convencerem que viver é algo que vale a pena serão capazes de se abrirem a um processo verdadeiro de alteridade, que consequentemente permitirá um movimento de autotranscedência e de hétero-transcendência.


       Visitando os escritos do santo de Assis, ou lendo suas biografias, pode-se ver alguém que descobriu a beleza de viver. Para ele vida material e vida eterna são detalhes de uma mesma existência. Francisco é, portanto, alguém extremamente livre. Por essa razão, tem até a capacidade de tratar a morte como uma velha e íntima conhecida, pois a trata também de irmã. 


       E, valorizando as próprias vidas, percebendo-a como dom gratuito que emana das mãos bondosas do Pai, é que os seres humanos serão capazes de reconhecer o valor e a dignidade dos outros.


       É por isso que


Francisco apresenta uma predileção especial pelos marginalizados de sua época: o leproso, o pobre, o pecador, servindo-os para que recuperem sua dignidade humana e cristã. Só a acolhida, o amor e a misericórdia podem tocar o coração do irmão e podem transformar e mudar o irmão. [9]


       Neste sentido, a proposição franciscana permite a construção de uma antropologia puramente relacional, onde o outro não é apenas o foco das atenções, mas objeto de familiaridade, de proximidade. É a construção de um sentimento de verdadeira fraternidade. Esta capacidade de abertura e acolhida toca o outro e o faz abrir-se também, destruindo os muros de separação e as armas que mantém os diferentes em polos bem distantes. Isso é resgate da dignidade, e o homem que se percebe assim se sente amado e, por isso, muda. Foi possível perceber esse movimento nos últimos anos, onde muitos dos imigrantes mulçumanos que foram acolhidos em alguns países por inciativa da Igreja pediram o batismo. Foi o testemunho de acolhida que os cristãos deram que lhes abriram as portas da fé católica.


       Imbuído deste espírito, cada indivíduo se sente impelido em ser agente de transformação no lugar que está. Ele compreende que seu exemplo é semente lançada na terra boa, que logo cresce e multiplica. É verdade que


Quando se fala de exemplaridade, não se fala de um modelo heroico de perfeições, mas sim de um ser concreto e real, uma pessoa que se conhece e que as conhecem. Que sabe integrar sua própria história pessoal, suas feridas, seus limites, seus constantes contrastes, seus fracassos e suas conquistas. É um irmão que, porque desapropriado, não impõe, mas propõe, desde sua experiência pessoal o caminho do Evangelho. No diálogo interpessoal compartilha seu próprio caminho, com suas luzes e sobras. Respeitoso do tempo e do ritmo do outro.  [10]


       O humanismo franciscano é, portanto, um caminho propositivo e relacional. Compreende que cada um tem o direito de manter suas convicções, sua identidade cultural, suas diferenças. Sem, contudo, transformar isso em indiferença, mas trazendo o outro para perto, fazendo-o próximo, irmão. A partir desta relação que se propõe a mudança, como aludido anteriormente.


       Num mundo tão complexo, tão apático, que muitas vezes parece ser incapaz de compaixão e empatia, o humanismo franciscano é ferramenta eficiente para a construção de um mundo mais justo, permeado pelos valores da paz e da concórdia, onde todos são irmãos. Talvez seja utopia, mas são as utopias que movem os corações dos homens em direção a revolução, a revolução da Paz e do Bem.



[1] Admoestação 1, 16 – 19.

[2] Cf. 1 Celano, 81.

[3] Ibidem.

[4] Cf. Lição 12 do curso básico sobre o carisma franciscano. CFFB, pág. 8.

[5] Cf. Test 1-3

[6] Cf. CAS 115.

[7] El franciscanismo es antes de todo un modo de vivir y de interpretar las relaciones del hombre, sea consigo mismo, con los otros, con la naturaliza, con las cosas, con la cultura, con Dios. El franciscanismo, con podrán notar, es una antropologia profundamente relacional. (tradução nossa).

Cf. Antropologia Franciscana.

[8] Para Francisco las criaturas no son objeto de compra y venta, sino compañeros en el gran culto de la creación de Dios. Abrasado por el fuego divino no podia ocultar al exterior el ardor de su espiritu, ébrio de espíritu, impone um modo apassionado de amar la vida. (tradução nossa)

 Cf. El franciscano ante los nuevos paradigmas.

[9] Franscisco presenta una predileccion especial por los marginalizados de la época: el leproso, el pobre, el pecador, serviendoles para que recuperen su dignidade humana y cristiana. Solo la acogida, el amor y la misericórdia pueden tocar el corazón del Hermano, y pueden transformar y cambiar el Hermano. (tradução nossa).

 Cf. Frei Miguel Angel. El corazón del franciscanismo

[10]Cuando se habla de ejemplaridad no se habla de um modelo heroico de perfecciones sino de um ser concreto y real, una persona que se conoce y que la conocen. Que sabe integrar su propria historia personal, sus heridas, sus limites, sus constantes contrastes, sus fracasos y sus logros. Es um hermano que porque desapropriado no impone sino propone desde su experiencia personal el camino del evangelio. En el dialogo interpersonal comparte su próprio camino con sus luces y sus sobras. Respetuoso del tempo y del ritmo del outro. (tradução nossa)

Cf.  Frei Miguel Angel. La memoria.


Fonte: Frei Gilberto Sales OFM
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