SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: A Conversão de São Paulo

No dia 25 de janeiro, a Igreja celebra a Conversão de São Paulo. Entre tantos sermões, Santo Antônio tem um dedicado a esta solenidade que apresenta uma mensagem para o verdadeiro apostolado. Acompanhe na íntegra.

Sermões

24.01.2023 08:27:32 | 25 minutos de leitura

SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: A Conversão de São Paulo

1. Naquele tempo, Simão Pedro disse a Jesus: "Eis que nós abandonamos tudo e te seguimos" (Mt 19,27).
Neste evangelho devem ser considerados dois fatos: a excelsa dignidade dos apóstolos no juízo final e a recompensa daqueles que abandonam as coisas transitórias.

I - GRANDEZA DOS APÓSTOLOS NO JUÍZO FINAL

2. "Eis que nós abandonamos tudo." Pedro, "corredor ligeiro, que percorre seus caminhos" (Jr 2,23), diz: "Eis que nós abandonamos tudo"

        Pedro, agiste sabiamente: certamente, carregado de pesos, não podias seguir atrás daquele que corre. Pouco antes, ouvira o Senhor que afirmava: "Em verdade vos digo: dificilmente um rico entrará no Reino dos Céus" (Mt 19,23); e por isso, para entrar ali com facilidade, abandonou tudo.

        O que se entende por "tudo". As coisas exteriores e as interiores, isto é, as coisas possuídas e também a vontade de possuir, de tal modo que não nos restou absolutamente nada (literalmente, nenhuma relíquia, do latim relinquere, deixar). Diz o Senhor por boca de Isaías: "Destruirei o nome da Babilônia, as suas relíquias [resto] e o germe e toda a sua raça" (Is 14,22). O nome da Babilônia indica os termos que exprimem a propriedade, como meu e teu. Cristo destruiu nos apóstolos não só este nome, mas também as relíquias da propriedade; e não só estas, mas também o germe, isto é, a tentação de ter, e a estirpe, isto é, a vontade de possuir.

        Bem-aventurados os religiosos nos quais estas coisas são destruídas, porque, com justiça, também eles poderão dizer: "Eis que nós abandonamos tudo".

        Olhai os apóstolos que voam. Diz Isaías: "Quem são estes que voam como as nuvens, e como as pombas para os seus pombais»" (latim: ad fenestras, para as janelas) (Is 60,8). As nuvens são leves. Os apóstolos, deposto o peso do mundo, voam leves, sobre as asas do amor, atrás de Jesus. Diz Jó: "Porventura, conheces os grandes caminhos das nuvens e a ciência perfeita?" (Jó 37,16). Grande caminho é o deixar tudo: caminho estreito durante o peregrinar desta vida, mas largo e grande no momento da recompensa. Ciência perfeita é amar a Jesus e andar atrás dele. Este foi o caminho e esta foi a ciência dos apóstolos, que, como pombas, voaram para suas janelas.

        "Janelas" (latim: fenestra) é como dizer " que levam para fora" (latim: ferentes ex. tra). Os apóstolos e os homens apostólicos, simples e inocentes como pombas, voaram para longe das coisas terrenas, de maneira a guardar as janelas dos sentidos, para não sair através delas para as coisas exteriores que haviam abandonado. Por esta janela saiu a pomba sem coração, que se deixou seduzir. O Gênesis narra que Dina, filha de Jacó, saiu para ver as meninas daquela região. Viu-a Siquém, que a roubou e violou sua virgindade (cf. Gn 34,1-2). Assim, a alma infeliz. É levada para o exterior através dos sentidos do corpo para ver as belezas mundanas; e enquanto vai errando para cá e para lá, com seu consenso, é roubada pelo diabo, e o resultado é a sua ruína. Que diversidade de voo! Os apóstolos, das coisas terrenas, voam para as celestes; esta, das coisas celestes, desce para as terrenas; esta voa para o diabo, aqueles para Cristo.

3. "E te seguimos" (Mt 19,27). Por ti abandonamos tudo, e nos tornamos pobres.

        Mas porque tu és rico, seguimos-te, para que nos tornes ricos também nós. Mais miseráveis do que todos os homens são os religiosos que abandonam tudo e, todavia, não seguem a Cristo. Eles têm um prejuízo duplo: são privados de toda consolação exterior, e também não têm a interior; enquanto os mundanos, mesmo que lhes faltem as coisas interiores, têm ao menos as consolações exteriores.

        "E te seguimos", nós criaturas seguimos o Criador, nós filhos, o pai, nós crianças, a mãe, nós famintos, o pão, nós sedentos, a fonte, nós doentes, o médico, nós cansados, o sustento, nós exilados, o paraíso. "Seguimos-te": Nós corremos para a fragrância dos teus perfumes (cf. Ct 1,3), porque "o perfume dos teus unguentos supera todos os aromas (Ct 4,10).

        Lê-se na História natural que a pantera é uma fera de maravilhosa beleza e que seu odor é de tal forma inebriante que supera qualquer outro perfume. Por isso, quando os outros animais pressentem sua presença, imediatamente aproximam-se e a seguem, porque se sentem extraordinariamente revigorados ao vê-la e cheirá-la (Aristóteles e Plínio). Quanta beleza e suavidade exista no Senhor nosso Jesus Cristo, experimentaram-no os bem-aventurados na pátria, mas, de algum modo, também os justos o saboreiam nesta vida. E quando os apóstolos constataram sua amabilidade, deixaram tudo e logo o seguiram.

        "Nós te seguimos; que haverá então para nós?" (Mt 19,27). Diz Jó: "Como aqueles que procuram um tesouro, e se alegram muito quando encontram um sepulcro" (Jó 3,21-22). O tesouro no sepulcro é figura de Deus no corpo assumido da Virgem.

        O apóstolos, encontrastes o tesouro, já o possuís inteiramente. O que procurais ainda? "O que teremos?" E o que quereis ainda? Conservai aquilo que encontrastes, porque ele é tudo o que procurais. Nele - diz Baruc - está a sabedoria, a prudência, a fortaleza, a inteligência, a longevidade e o alimento, a luz dos olhos e a paz (cf. Br 3,12.14). Está a sabedoria que cria tudo, a prudência com que governa as coisas cria-das, a fortaleza com a qual refreia o diabo, a inteligência com a qual tudo penetra, a longevidade que eterniza os seus, o alimento com o qual os sacia, a luz que ilumina, a paz que conforta e tranquiliza.

4. "E Jesus lhes disse: Em verdade vos digo: Vós que me seguistes" (Mt 19,28). O Senhor não diz: "Vós que deixastes tudo", mas "Vós que me seguistes": o que é próprio dos apóstolos e dos perfeitos. São muitos os que deixam tudo, e, no entan-to, não seguem a Cristo, porque, por assim dizer, retêm-se a si mesmos. Se queres seguir e conseguir, é necessário que abandones a ti mesmo. Quem segue um outro no caminho, não olha para si mesmo, mas para o outro que constituiu como guia do seu caminho. Deixar a si mesmo significa não confiar em si mesmo de modo algum, considerar-se inútil também se fez tudo o que foi ordenado (cf. Lc 17,10), desprezar a si mesmo como um cão morto ou uma pulga (cf. 1Sm 24,15), no próprio coração não antepor-se a ninguém, considerar-se o pior de todos os maiores pecadores, considerar todas as próprias boas ações como um imundo pano de mulher (cf. Is 64,6), colocar-se diante de si mesmo e chorar como morto, humilhar-se profundamente em todas as ocasiões e abandonar-se totalmente a Deus. Ouçamos o que é prometido aos que se comportam assim.

        "Na nova criação" (latim: in regeneratione) - a primeira regeneração acontece na alma por meio do batismo; a segunda acontecerá no corpo, no dia do juízo, quando os mortos ressurgirão incorruptos (cf. 1Cor 15,52) -, "quando o Filho do homem", isto é, Jesus, que na condição de servo foi submetido a juízo aqui na terra, "estará sentado", exercerá o seu poder de juiz "sobre o trono de sua glória", que é a Igreja, onde será manifestada a sua onipotência, "sentar-vos-eis também vós sobre doze tronos" (Mt 19,28). Se somente os doze apóstolos, sentados sobre doze tronos, serão juízes com Cristo no dia do juízo, onde há de sentar-se Paulo, "vaso de eleição" (Ar 9,15), que, hoje, de lobo foi transformado em cordeiro, que trabalhou mais do que todos (cf. 1Cor 15,10), que foi arrebatado até o terceiro céu, onde ouviu os segredos que não é lícito revelar? (cf. 2Cor 12,2.4). Onde há de sentar-se, pergunto-me, tão grande homem, se no tribunal só há doze tronos para os juízes, já que ele afirma: "Não sabeis que nós julgaremos os anjos?" (1Cor 6,3), entende-se, os anjos maus.

        Por isso, é necessário saber que o número doze é usado para indicar a plenitude do poder, e que nas doze tribos de Israel são indicados todos aqueles que deverão ser submetidos a juízo. Eis, pois, que os pobres, junto com Jesus pobre, filho da Virgem pobrezinha, julgarão com justiça todo o mundo (cf. S1 9,9; 95,13). Diz também Jó:

        "Deus não salva os ímpios e deixará o juízo aos pobres" (Jó 36,6). Diz "aos pobres" e não aos ricos, "cuja glória lhes serve de confusão" (Fl 3,19). Com efeito, ficarão confusos, quando virem sentados em juízo com Cristo, e com Cristo julgar aqueles que antes, neste mundo, haviam escarnecido e injuriado (cf. Sb 5,3).

II - RECOMPENSA DAQUELES QUE DEIXAM AS COISAS PASSAGEIRAS

5. Recompensa daqueles que deixam os bens terrenos: "E todo aquele que deixar a casa, ou os irmãos, ou as irmãs, ou o pai, ou a mãe [ou a mulher] (Lc 18,29), ou os filhos, ou os campos" etc. (Mt 19,29), isto é, tiver posto o meu amor acima de todos os afetos terrenos.

6. Sentido moral. A casa simboliza o mau hábito; os irmãos, os sentidos do corpo; as irmãs, os pensamentos ociosos da mente; o pai, o diabo; a mãe, a sensualidade; a mulher, a vaidade do mundo; os filhos, as obras; o campo, as preocupações terrenas.
        
        Seguindo o procedimento da geração humana, determinemos também a do pecador, que, de filho de Deus, torna-se filho do diabo. Da sugestão do diabo e da concupiscência da sensualidade, como de duas sementes, é gerado o pecador. Com efeito, diz-se em Ezequiel: "Teu pai é amorreu, tua mãe centeia" (Ez 16,3).

        Amorreu interpreta-se "que torna amargo" (amaricans). De quanta amargura seja o diabo, sabem-no aqueles que foram contaminados por sua doçura, que é como o verme (cf. Is 66,24). Ninguém pode sentir bem a amargura de uma coisa, se antes não tiver bebido algo doce. Diz Habacuc: "Ai daquele que dá de beber ao seu amigo uma mistura de fel e o embriaga para ver sua nudez. Será repleto de ignomínia e não de glória" (Hab 2,15-16). Para mais facilmente enganar e para que o pecador beba mais tranquilo, o diabo oferece primeiro o mel do prazer, para depois inocular-lhe a amargura da morte, enquanto o mel é avidamente sorvido; e assim o pecador, amigo do diabo, é logo despojado da graça de Deus e, na vida futura, em troca da glória do mundo, será coberto da ignomínia do inferno.

        Ceteia interpreta-se "quebrada". E esta é a concupiscência da carne, que deve ser quebrada sob o jugo da humildade; de fato, diz o Eclesiástico: "O jugo e as correias fazem curvar o pescoço duro, e as tarefas assíduas amansam o escravo. Ao escravo malévolo, tortura e grilhões; manda-o para o trabalho, para que não esteja ocioso, porque a ociosidade ensina muita malícia (Eclo 33,27-29). O escravo representa a sensualidade, cuja soberba se dobra com o jugo da humildade, cuja lascívia se freia com o tormento da abstinência e a corrente da obediência.

        Eis o pai e a mãe do pecador, cujos irmãos são os ilícitos apetites dos sentidos. Estes são os irmãos de José, que o desceram numa velha cisterna (cf. Gn 37,20). José representa o espírito do homem; a velha cisterna é o pecado mortal ou também o inferno. Esses irmãos, como diz João, querem que o espírito participe dessa festa (cf. Jo 7,8), isto é, da glória das coisas temporais. Deles diz Jó: "Meus irmãos passaram longe de mim, como a torrente que atravessa rapidamente os vales" (Jó 6,15). Para os vales descem as imundícies. Os sentidos da carne correm vertiginosamente para Os vales da gula e da luxúria, sem se preocupar com a ruína do espírito.

        Depois, existem as "irmãs" , assim chamadas de semente, porque só elas com os irmãos fazem parte da estreita parentela. As irmãs do pecador são os pensamentos moles da mente, que nascem da semente da sugestão diabólica. Delas diz Ezequiel: "Houve duas mulheres, filhas da mesma mãe, e se prostituíram no Egito. A mais velha chamava-se Oola e sua irmã mais nova Ooliba" (Ez. 23,2-4). São dois, de modo particular, os pensamentos pelos quais, geralmente, torna-se culpada a mente do pecador: o destino do dinheiro e o prazer da luxúria, que são como duas irmãs prostitutas.

        E enfim, a "mulher" do pecador é a vaidade do mundo. E esta é Jezabel, mulher de Acab, da qual lemos no Terceiro livro dos Reis: "Instigado por Jezabel, sua mulher, Acab cometeu muitas abominações, adorando os ídolos" (IR$ 21,25-26). Jezabel interpreta-se "fluxo de sangue", ou "sangue que flui ou também "esterqueira". E esta é a vaidade do mundo, da qual escorre o sangue de todos os pecados, e que, no momento da morte, será mudada em esterqueira. Lê-se, de fato, no Primeiro livro dos Macabeus: «A glória do pecador é esterco e verme; hoje eleva-se e amanhã desaparecerá, porque voltará à terra de onde veio e o seu pensamento se desvaneceu" (1Mc 2,62-63). Essa mulher não permite que o homem viva em paz, mas o instiga a adorar os ídolos, isto é, a cometer toda a espécie de pecado, e por isso torna-se repugnante a Deus.

7. Depois que o diabo deu uma mulher a seu filho, quer que dela gere filhos, netos do próprio diabo: nestes são representadas as obras vás, inúteis, as obras das trevas, dignas da morte eterna. Sobre isso diz Neemias: "Vi Judeus que se tinham casado com mulheres de Moab e os seus filhos falavam a língua de Azoto e não sabiam falar a língua judaica", isto é, o hebraico (Ne 13,23-24). Moab interpreta-se "do pai", Azoto "incêndio" ou "fogo". Assim também hoje, muitos cristãos e religiosos casam-se com mulheres, isto é, seguem as vaidades do mundo, geradas pelo diabo, e delas geram filhos, quer dizer, obras que não sabem falar o judaico, isto é, não sabem louvar a Deus, mas falam só a língua de Azoto, isto é, cultivam o incêndio da gula e da luxúria e o fogo da avareza.

        Eis "a geração iníqua e perversa" (Dt 32,5), à qual o diabo fornece a casa dos maus hábitos. Esta é a casa e a fornalha de ferro do Egito da qual fala o Éxodo: "Lembrai-vos deste dia em que saístes do Egito e da casa da servidão" (Ex 13,3). O dia é o sol que brilha sobre a terra; o sol é a graça de Deus, a qual, enquanto ilumina a mente, liberta da servidão dos maus hábitos. O pecador já libertado deve recordar-se "deste dia" e dar sempre graças a Deus.

        O diabo dá também os campos das preocupações terrenas. Campo, em latim se diz ager, porque nele se trabalha (latim: agitur). Diz o Gênesis: "Caim disse a Abel, seu irmão: Saiamos para fora. E encontrando-se no campo, insurgiu-se Caim contra Abel e matou-o" (Gn 4,8). Caim interpreta-se "posse", Abel "pranto". No campo das preocupações terrenas, a posse das riquezas mata o pranto da penitência. Este é o Hacéldama, isto é, campo de sangue (At 1,19). Mateus, porém, diz campos (Mt 19,29), e não campo, precisamente pelo grande número das preocupações materiais.

        Aqueles, pois, que tiverem deixado todas essas coisas, neste mundo receberão o cêntuplo, isto é, os bens espirituais, que, comparados aos bens materiais, e sobretudo por seu valor intrínseco, são como o número cem comparado a um numerozinho. Diz Marcos: "Receberá cem vezes mais na vida presente, em perseguições", isto é, nesta vida cheia de perseguições, "e no futuro a vida eterna" (Mc 10,30).

        Conduza-nos à posse dessa vida aquele que é bendito nos séculos. Amém.

III - SERMÃO ALEGÓRICO

8. José mandou que, na boca do saco do irmão mais novo, Benjamim, fosse posta a sua taça de prata (cf. Gn 44,1-2). Encontramos uma referência a estas palavras no Livro dos Provérbios: «Prata escolhida é a língua do justo" (Pr 10,20). Benjamim foi primeiramente chamado Benoni, isto é, "filho de minha dor» e só depois Benjamim, quer dizer, "filho da direita" (cf. Gin 35,18). Ele é figura do Bem-aventurado Paulo, que, escrevendo aos Filipenses, diz de si mesmo: "Eu, circuncidado ao oitavo dia, da estirpe de IsraeI, da tribo de Benjamim, hebreu de pais hebreus, fariseu segundo a lei, quanto ao zelo perseguidor da Igreja de Deus" (Fl 3,5-6).

        Eis Benoni. Com efeito, primeiro, filho da dor, e só depois, filho da direita. Dizem os Atos: "Entretanto Saulo, respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos do Senhor." (At 9,1). Saulo interpreta-se "tentação". Onde há tentação, há dor. Ouça a tentação e a dor: "Saulo assolava a Igreja, entrando pelas casas e, tirando com violência homens e mulheres, mandava lançá-los na prisão" (At 8,3). O Cabeça da Igreja estava no céu, os pés andavam sobre a terra, e Saulo os pisava e oprimia.

        Por isso, do céu, o Cabeça clamava: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" (At 9,4; 22,7). Saulo tentava, e o Cabeça sofria e clamava: Tentação, tentação, por que me persegues? O que conseguirás com isso? Eis, alcançarás que por uma só perseguição serás batido cinco vezes com as varas, recebendo cada vez quarenta golpes menos um (cf. 2Cor 11,24). Terás também tu as tentações "nas numerosas viagens, com perigos de rios e perigos de ladrões" (2Cor 11,26). És filho da dor, e dor deverás suportar porque três vezes serás flagelado, uma vez apedrejado e três vezes naufragarás (cf. 2Cor 11,25).

        Ouvimos sobre Benoni. Ouçamos também sobre Benjamim, e de que modo o filho da dor foi hoje mudado em filho da destra: aquela Destra que hoje abateu o lobo e mandou elevar o cordeiro. Narra Lucas: "E seguindo ele seu caminho, aconteceu que, ao aproximar-se de Damasco, de repente, rodeou-o uma luz do céu. E caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia - em hebraico: Saulo, Saulo! etc. (At 9,3-4). Destra, em latim, soa quase como dans extra, "que dá para fora". A destra do Onipotente "deu fora" um tal golpe sobre o duro pescoço do rinoceronte que o fez cair por terra. "Envolveu-o" em pleno dia "uma luz do céu" que superava o esplendor do sol. Ó piedosa e benigna intervenção da Destra! Tu que feres com o flagelo da luz, censuras com voz doce: "Por que me persegues." (At 9,4). Hoje realizou-se aquilo que estava escrito: "A destra do Senhor fez maravilhas!" (SI 117,16). A destra do Senhor, abatendo o perseguidor Saulo, exaltou-o, porque o lobo se fez um cordeiro, de perseguidor da Igreja um pregador seu.

9. "A destra do Senhor fez maravilhas", quando sobre a boca do saco colocou sua Faça de prata, "Vai, Ananias, pois este é para mim um vaso de eleição, para levar o meu nome diante dos povos e dos reis e dos filhos de Isaac» (Ar 9,15). A raça de prata é figura da sabedoria luminosa c eloquente, que José, isto é, Cristo, pós como especial prerrogativa no coração e na boca do mais novo Benjamim, isto é, do Bem-aventurado Paulo. Benjamim era o menor e o último entre os seus irmãos; e Paulo, na Primeira carta aos Coríntios diz: "Por último, depois de todos, como por um aborto, foi também visto por mim. Porque eu sou o mínimo dos apóstolos, e não sou digno de ser chamado apóstolo" etc. (1Cor 15,8-9). Mínimo é um termo que vem de mónada (a unidade), porque não existe número menor do que a unidade. Ó humildade do mínimo! Ele não se gloria, não se exalta pelo dom da sabedoria e da eloquência, nem pela grandeza das revelações e dos milagres, nem pelos celestes segredos que ouviu, mas chora sobre si mesmo pela perseguição que desencadeou contra a Igreja. "Eu nem sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus" (1Cor 15,9).

        Ai de nós, míseros, que escondemos aos nossos olhos os nossos numerosos pecados para não vê-los; e se fizemos apenas uma coisa boa, que é quase nada, colocamo-la diante dos olhos e a mostramos a todos. Mas deveríamos fazer como fazem os "ribaldi" que, quando querem ganhar alguma coisa, escondem as vestes boas, se as têm, e mostram sua nudez e sua miséria aos ricos deste mundo. Assim também nós, se fizemos o bem, mantenhamo-lo escondido e, ao contrário, mostremos as misérias de nossa fraqueza, para receber do Senhor o dom de sua graça.

        Demos graça a Jesus Nazareno que hoje, em lugar de um perseguidor, nos deu um admirável doutor, que nos ilumina com sua doutrina, que é bendito nos séculos dos séculos. Amém.

IV - SERMÃO MORAL

10. José ordenou que na boca do saco de Benjamim fosse posta a sua taça de prata. Vejamos que significado moral têm Benjamim, seu saco, a boca do saco e a taça de prata.

        Benjamim é figura do penitente, que antes é filho da dor: "A minha dor está sempre diante de mim" (SI 37,18). Presta atenção que diz: diante de mim. Diz-se que o avestruz põe seus ovos diante de si, olha-os fixa e continuamente e, fixando-os, aquece-os, e assim os ovos se abrem e nascem os filhotes. Assim o pecador deve ter sempre diante da mente as suas obras, examiná-las com frequência e atentamente, com dor, para delas fazer germinar o fruto da penitência. Quem põe a si mesmo diante de si, não encontra outra coisa senão dor. Os míseros pecadores, porém, fazem como os macacos, dos quais diz a História natural que, quando é lua cheia, pulam alegremente, e quando a lua é minguante ou crescente tornam-se tristonhos; carregam na frente os filhotes que amam e às costas aqueles que não amam. O capricho da sorte muda com o aspecto da lua: cresce e diminui, e não pode mais permanecer a mesma. Quando a sorte do mundo é como a lua cheia, então os carnais exultam. Lemos no Livro de Jó: "Divertem-se com jogos, cantam ao som de tímpanos e cítaras e dançam ao som dos instrumentos. Passam no gozo os seus dias e depois, num ponto (num momento) descem ao inferno" (Jó 21,11-13). Ponto deriva de pungere.

        Na hora da morte, os mundanos serão pontos do diabo tão fortes, que do leito no qual estão deitados serão obrigados a fazer um salto até o inferno. De fato, quando a sorte lhes apresenta "os cantos" da adversidade, caem na tristeza, porque as adversidades deprimem, enquanto a prosperidade exalta. Esses carregam ao peito os filhos, isto é, a glória do mundo, os prazeres da gula e da luxúria da carne, coisas que amam; ao contrário, mantém atrás das costas o sofrimento, a penitência e as misérias desta vida, onde não veem.

        Mas ouçamos o que faz Benoni. "Minha dor está sempre diante de mim." Porque ama a dor, tem-na sempre diante de si e nela se examina como num espelho e descobre suas manchas. Diz Jeremias: "Faze-te um ponto de observação, entrega-te à amargura e dirige o teu coração para o caminho reto" (Jr 31,21). Uma coisa deriva da outra: Quem põe diante de si o espelho de sua vida, entrega-se à amargura e, necessariamente, orienta seu coração para a vida das boas obras. Aquele que desse modo for Benoni, tornar-se-á Benjamim, isto é, filho da destra.

11. Presta atenção, porque a destra é figura de duas coisas: da graça na vida presente, e da glória, na futura. Sobre a destra da graça fala-se no Apocalipse: "E tinha na sua mão direita sete estrelas" (Ap 1,16). Estas sete estrelas são apresentadas na leitura da missa, quando se lê de Saulo: De repente, envolveu-o uma luz do céu, caiu por terra, levantou-se e entrou na cidade, recuperou a vista, recebeu o batismo, tomou alimento e pregou a Jesus (cf. At 9,3-20 passim).

        No primeiro evento [envolveu-o uma luz] é indicada a graça preveniente, no segundo, a consideração da fragilidade, no terceiro, o reconhecimento da própria iniquidade, no quarto, a purificação da consciência, no quinto, a efusão das lágrimas, no sexto, a doçura da contemplação, no sétimo, o anúncio da Palavra ou também a ação de graças. Consideremos individualmente cada uma dessas coisas.

        Quando o pecador se dirige para Damasco, nome que se interpreta "bebida de sangue", isto é, tende a assimilar a imundície do pecado, de repente, porque não sabe de onde vem e para onde vai, "envolveu-o uma luz do céu", da qual Jó diz: Indica-me em que caminho habita a luz, e onde moram as trevas, para que tu as conduzas aos seus lugares (cf. Jó 38,18-20). A luz é a graça; a morada das trevas é a mente cega do pecador, o lugar do pecado é o fim, o termo. Quando a mente do pecador é iluminada pela graça, põe-se fim ao pecado.

        "Caiu por terra.» Diz o salmo: "Diante dele cairão todos os que descem à terra" (S121,30). Como se dissesse: Humilha-se na presença de Deus aquele que considera a sua fragilidade.

        "Entra na cidade." Diz o salmo: "O dia todo eu andava cheio de tristeza" (S. 37,7). No exterior combates, no interior culpas e temores (cf. 2Cor 7,5). Se alguém, quando está fora de casa, recebesse uma ofensa, e depois, ao entrar, encontrasse a casa suja e em desordem, será que não se doeria e entristeceria profundamente? Não há dúvida. Assim o penitente, considerando a malícia exterior do mundo e reconhecendo também a interior de sua consciência, anda todo o dia repleto de tristeza. Presta atenção que diz "o dia todo". Antes que um raio de sol entre na casa, no seu interior, não é visível o pó suspenso no ar; mas se entra ali um raio de sol, logo o ar se mostra cheio de pó. O raio de sol é a consciência que mostra ao homem as culpas de sua consciência, e põe em evidência, com grande clareza, aquilo que antes estava escondido. E já que alguém deve entrar em si mesmo não só de vez em quando, mas continuamente, e entristecer-se por seu estado, diz precisamente "o dia todo". Quem quer conhecer sua miséria de maneira completa, deve entrar em si mesmo e entristecer-se não por metade do dia, mas o dia todo. E já que por essa tristeza se chega à emenda da consciência, eis o quarto ponto:

        "Recuperou a vista." "De repente [diz Lucas] caíram-lhe dos olhos como que escamas" (At 9,18). Temos uma referência a isso no Livro de Tobias: "Começou a sair de seus olhos uma matéria branca, semelhante à película de um ovo. Tomando-a, Tobias tirou-a dos olhos de seu pai, e este recuperou a vista" (Tb 11,14-15). As escamas são figura da impureza da mente, e a película do ovo simboliza a vanglória. Diz Jeremias: "As suas virgens são esquálidas" (Lm 1,4), isto é, rugosas. A ruga no homem é comparável às escamas do peixe ou da serpente. Como se dissesse: Mesmo que sejam virgens no corpo, são rugosas por causa do imundo excitamento da fantasia. A película do ovo, que é sutil e cândida, representa a vanglória, que é muito sutil, isto é, astuta, porque quando parece que alguma coisa seja feita por devoção, é feita, porém, pelo desejo de louvor mundano; é cândida porque se compraz só pela aparência exterior. "Cândido" é um termo que insinua a ideia de uma brancura artificial (branqueado), enquanto que, com o termo "branco", indica-se a brancura natural. Essas duas culpas, a impureza da mente e a vanglória, cegam os homens; mas quando, com a graça de Deus, são removidas, a consciência é purificada e se recupera a vista.

        "Recebeu o batismo." Lê-se no Livro de Judite que ela "saía de noite para o Vale de Betúlia e se lavava (latim: batizava-se) numa fonte de água" (Jt 12,7). Judite interpreta-se "que confessa", Betúlia, "casa que dá à luz o Senhor"; noite, "tempo silencioso"; vale, "humildade"; fonte, "lágrimas. Quem se confessa, isto é, o penitente, sai do tumulto interior e exterior, sai de noite [literalmente], ou no silêncio, para o vale abaixo de Betúlia, na humildade da consciência, com a qual dá à luz o Senhor, para si na contrição, para os outros com a pregação, e ali se batiza, lava-se, na compunção das lágrimas.

        "Tomou alimento." Diz o Eclesiástico: "O Senhor o alimentou com o pão da vida e da inteligência" (Eclo 15,3). Considera que existe uma dupla doçura na contemplação: a primeira está no sentimento e pertence à vida, a segunda está no intelecto e pertence à ciência. Esta segunda acontece com a elevação da mente, enquanto que a primeira se verifica numa espécie de alienação da mente. A elevação da mente se obtém quando a agudez da inteligência, iluminada por Deus, transcende os limites das capacidades humanas, mas sem chegar à alienação da mente, de maneira que aquilo que vê está acima de si mesma, todavia, não se afasta totalmente das coisas habituais. Tem-se a alienação da mente quando a memória [a lembrança] das coisas presentes abandona a mente e, transfigurada pela intervenção divina, passa para um certo estado de ânimo extraordinário e inacessível à capacidade humana.

        Quem está saciado de tal alimento, tem condições de, bem confortado, "pregar a Jesus" ou também dar-lhe graças. Com efeito, diz o salmo: "Os pobres comerão e serão saciados e louvarão o Senhor" (SI 21,27). Os pobres, isto é, os humildes, primeiro comerão com a inteligência, e depois serão saciados no afeto, no sentimento, e assim louvarão o Senhor.

        Estas são, pois, as sete estrelas que estão na destra de Cristo, cujo filho é agora Benjamim, pois antes foi Benoni.

12. Benjamim é chamado "mais jovem", porque era o menor, o último de todos os irmãos: nele é indicada a humildade do penitente. A mesma coisa é dita também de Davi: "Resta ainda o menor, que agora está apascentando as ovelhas" (1Sm 16,11). Somente a humildade da consciência apascenta as ovelhas da inocência. Na boca do saco deste Benjamim, o antigo José ordenou que fosse posta a taça de prata. A taça de prata simboliza a aberta e explícita confissão dos pecados, que o penitente deve encher com o vinho da compunção e oferecer a Cristo. Por isso, diz Neemias: "Tomei o vinho e ministrei-o ao rei e eu estava como que desfalecido na sua presença" (Ne 2,1). E a esposa do Cântico dos Cânticos: "Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém", isto é, virtudes celestes, "se encontrardes o meu amado, dizei-lhe que desfaleço de amor" (Ct 5,8). Quem desfalece de amor por Cristo oferece-lhe o vinho da compunção. E observa que diz "tomei". O hipócrita não toma, não aumenta a compunção, mas reprime-a, porque ele só espalha lágrimas por vanglória.

        Essa taça de prata é posta na boca, e não no fundo do saco. O saco é áspero e rude, e é figura do coração contrito, do qual, no Livro de Jonas, se diz que o rei de Nínive "vestiu-se de saco e sentou-se sobre a cinza" (n 3,6). Nínive interpreta-se "formosa". E esta é a vaidade do mundo, que é como o barro coberto de neve; seu rei é o penitente, porque ele a pisa: vestido de saco, senta-se sobre a cinza porque, na contrição do coração, medita sobre seu fim, quando será reduzido a cinza. Ele não esconde no fundo, mas traz na boca a taça de prata de sua confissão, sempre pronto à acusação de si mesmo. E observa que diz "a sua taça". Não deves atribuir a graça da confissão a ti mesmo, mas a Cristo, de quem provém o que de bom existe em ti.

        A ele, pois, seja dada glória e honra. Ele que de Benoni faz um Benjamim, de um Filho da dor faz, na vida presente, um filho da graça e, na vida futura, faz um filho da glória, quando, junto com aqueles que estão à direita, merecerá ouvir: Vinde, benditos de meu Pai, e recebei o reino! (cf. Mt 25,34). 

        Digne-se concedê-lo também a nós aquele que é bendito nos séculos dos séculos. Amém.

Fonte: Sermões | Santo Antônio; tradução de Frei Ary E. Pintarelli, OFM: Vozes, 2019
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