SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: No princípio criou Deus o céu e a terra - Parte 1

Confira a primeira parte de um Sermão de Santo Antônio, onde o mesmo faz uma profunda ligação entre os sete dias da Criação com os sete artigos da fé. Esta reflexão foi feita no Conhecido Domingo da Septuagésima quando a liturgia apresenta em seus textos os temas da criação, elevação e queda do homem.

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13.09.2022 07:31:24 | 1 minutos de leitura

SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: No princípio criou Deus o céu e a terra - Parte 1

       A Ezequiel, ou seja, ao pregador, fala o Espírito Santo: E tu, filho do homem, pega num tijolo e desenha nele a cidade de Jerusalém. O tijolo, pelas quatro propriedades que possui, significa o coração do pecador. Forma-se de duas tábuas, é levado a uma extensão determinada, consolida-se pelo fogo, torna-se vermelho. Também o coração do pecador deve formar-se entre as duas tábuas de ambos os Testamentos. De fato, no meio dos montes, isto é, dos dois Testamentos, como diz o Profeta, passarão as águas, a saber, as águas da doutrina. E diz bem: forma-se, pois que o pecador, deformado pelo pecado, recebe forma pela pregação de ambos os Testamentos. O tijolo é levado a uma extensão determinada, já que a amplidão da caridade alarga o coração estreito do pecador. Donde a palavra do Salmo: O teu mandamento é imensamente grande; e a caridade é a mais larga do que o oceano. O tijolo consolida-se pelo fogo, uma vez que o espírito, cheio de humores e dissolúvel, através do fogo da tribulação se consolida, a fim de que não se derrame no amor das coisas temporais, porque, na frase de Salomão, o que a fornalha faz ao ouro, a lima ao ferro, o mangual ao grão, isto faz a tribulação ao justo. O tijolo torna-se vermelho. Nisto se nota a audácia do zelo santo, de que fala o Profeta: O zelo da tua casa, isto é, da Igreja ou da alma fiel, devorou-me. E Elias: Ardo de zelo pela casa de Israel.

       No tijolo, portanto, notam-se quatro coisas: A ciência de cada um dos Testamentos, para instrução do próximo; a abundância da caridade, para o amar; a paciência da tribulação, para suportar o opróbrio por amor de Cristo; a audácia do zelo, para dar cabo de todo e qualquer mal. Pega, conseguintemente, num tijolo e desenha nele a cidade de Jerusalém.
 
       2. A Jerusalém espiritual é tripla: a primeira é a Igreja militante; a segunda, a alma fiel; a terceira, a pátria celeste. Pegarei, portanto, em nome do Senhor, num tijolo, isto é, no coração de qualquer ouvinte, e desenharei nele a tripla cidade, isto é, os artigos (da fé) da Igreja, as virtudes da alma, os prêmios da pátria celeste, sob o número sete, trazendo à colação sentenças de ambos os Testamentos, e expondo-as.
 
       I – Os sete dias da criação e os sete artigos da fé
 
       3. No princípio criou Deus o céu e a terra, etc. Entenda-se o continente e o conteúdo. Deus Pai, no princípio, ou seja, no Filho, criou e recriou. Criou em seis dias, descansando ao sétimo; recriou com seis artigos da fé, prometendo no sétimo o descanso eterno.
 
       No primeiro dia disse Deus: Faça-se a luz, e a luz foi feita. O primeiro artigo de fé é a Natividade. No segundo dia, disse Deus: Faça-se o firmamento no meio das águas e separe umas águas de outras águas. O segundo artigo da fé é o Batismo. No terceiro dia, disse Deus: Produza a terra erva verde e que dê semente, e árvores frutíferas que produzam fruto segundo a sua espécie. O terceiro artigo é a Paixão. No quarto dia, disse Deus: Façam-se dois grandes luzeiros no firmamento. O quarto artigo é a Ressurreição. No quinto dia, fez Deus os voláteis no ar. O quinto artigo é a Ascensão. No sexto dia, disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança; e inspirou no seu rosto o sopro de vida, e o homem tornou-se alma vivente. O sexto artigo é o envio do Espírito Santo. No sétimo dia, Deus descansou de todas as obras que tinha feito. O sétimo artigo é a vinda a juízo, em que descansaremos de todas as nossas obras e fadigas.
 
       Invoquemos, portanto, o Espírito Santo, amor e união entre o Pai e o Filho, para que nos conceda unir e concordar de tal modo os sete dias e sete artigos, que daí lhe provenha honra e edificação para a sua Igreja.
 
       4. No primeiro dia, disse Deus: Faça-se a luz, etc. Esta luz é a sabedoria de Deus Pai a iluminar todo o homem que vem a este mundo, e que habita uma luz inacessível. Dele diz o Apóstolo aos Hebreus: Ele é o resplendor e a figura da sua substância; e o Profeta: Na tua luz veremos a luz; e no livro da Sabedoria: A sabedoria é o candor da luz eterna. Desta, pois, disse o Pai: Faça-se a luz, e a luz foi feita. Isto mais abertamente glossa S. João, ao referir: O Verbo se fez carne e habitou entre nós. E Ezequiel, com o mesmo pensamento, mas com diferentes palavras, afirma: Fez-se sentir sobre mim a mão do Senhor, isto é, o Filho, no qual e pelo qual tudo foi feito. A luz, por conseguinte, que era inacessível e invisível, fez-se visível na carne, iluminando o que se sentava nas trevas e na sombra da morte. Sobre esta iluminação conta o quarto evangelista que Jesus cuspiu em terra, fez lodo e limpou os olhos do cego de nascença. A saliva, que desce da cabeça do Pai, significa a sabedoria. A cabeça de Cristo, diz o Apóstolo, é Deus. A saliva une-se, portanto, ao pó, isto é, a divindade une-se à humanidade, a fim de que se faça luz nos olhos do cego de nascença, que é o gênero humano, feito cego no primeiro pai. Disto se deduz claramente que no dia em que Deus pronunciou: Faça-se a luz, nesse mesmo dia, isto é, no domingo, a Sabedoria de Deus Pai, o nascido da Virgem Maria, afugentouas trevas existentes sobre a face do abismo, quer dizer, do coração humano. Por isso, nesse mesmo dia, canta-se na Missa da Luz: A luz refulgirá, etc; e no Evangelho: Uma luz do céu rodeou os pastores.
 
       5. No segundo dia disse Deus: Faça-se o firmamento no meio das águas e separe umas águas de outras águas. O firmamento no meio das águas é o batismo a dividir as águas superiores das inferiores, isto é, os fiéis dos infiéis. E com razão se dizem águas inferiores, porque se dirigem a coisas inferiores e se abandonam diariamente às suas fraquezas. Porém, as águas superiores significam os fiéis, que, segundo o Apóstolo, devem procurar as coisas que são do alto, onde está Cristo sentado à direita de Deus.
 
       E nota que estas águas se chamam cristalinas, pois o cristal, atingido ou ferido pelos raios do sol, transmite centelhas ardentes. Assim, o varão fiel, iluminado pelos raios do sol, deve emitir centelhas de reta pregação e de boas obras que inflamem o próximo. Mas, ai! ai! rompido o firmamento, as águas superiores precipitar-se-ão no mar morto, entrando juntamente com os mortos. Daí a afirmação de Ezequiel: Estas águas que saem do túmulo da areia oriental e que descem para a planície do deserto, entrarão no mar. O túmulo significa a contemplação, na qual, como em túmulo, se sepulta e esconde um morto Cf. Job 5, 26. O homem contemplativo, morto para o mundo, sepulta-se e esconde-se da conturbação dos homens. Daí o dizer Job: Entrarás com abundância no sepulcro, como se recolhe um monte de trigo a seu tempo. O justo, na abundância da graça que lhe foi conferida, entra no sepulcro da vida contemplativa, tal como o monte de trigo entra a seu tempo no celeiro. Sacudidas, pois, as palhas dos bens temporais, o seu entendimento põe-se no celeiro da plenitude celeste; e uma vez ali posto, sacia-se com a sua doçura.
 
       6. E observa que este túmulo se chama areia oriental. A areia designa a penitência. Por isso, lê-se no Êxodo que Moisés escondeu na areia um egípcio morto. Efetivamente, o justo deve matar o pecado mortal na confissão e escondê-lo depois na satisfação da penitência, a qual deve sempre olhar para aquele oriente de que fala Zacarias: Eis o homem cujo nome é Oriente.
 
       Diga-se: Estas águas que saem do túmulo da areia oriental, etc. Ai! quantas águas, quantos religiosos saem do túmulo da vida contemplativa da areia da penitência, do oriente da graça! Saem, digo, da casa paterna com Dina e Esaú, saem da face divina com o diabo e Caim, saem da escola de Cristo com o traidor Judas, portador da bolsa, e descem para a planície do deserto, para o campo da solidão de Jericó, onde, como refere Jeremias, Nabucodonosor, isto é, o diabo, na largueza dos bens temporais, arranca os olhos a Sedecias. Este é o pecador, privado da luz da razão, ao qual matam os próprios filhos, ou seja, o diabo lhe destrói as próprias boas obras.
 
       Nesta planície, Caim, que se interpreta possessão, matou Abel, que se interpreta luto, porque a possessão da transitória abundância mata o luto da penitência. Descem, portanto, as águas para a planície do deserto. Por isso, diz-se no Gênesis que tendo partido do oriente para o ocidente, encontraram uma planície na terra de Senaar. Do oriente da graça para o ocidente da culpa partem os filhos de Adão, e logo que encontram a planície do gozo mundano, habitam na terra de Senaar, que se interpreta fedor. No fedor, pois, da gula e da luxúria edificam a casa do seu viver, não como cristãos, mas como pagãos que em vão receberam o nome do seu Deus, como diz o Senhor no Êxodo: Não tomes o nome do teu Deus em vão. Tomam em vão o nome de Deus os que trazem consigo, não a realidade do nome, mas o nome sem a realidade; e assim entram no mar, isto é, na amargura dos pecados, para desta chegarem depois à amargura dos tormentos.
 
       Mas Deus fez o firmamento do Batismo no meio das águas para as dividir uma das outras; mas estes pecadores, como diz Isaías, transgrediram as leis, mudaram o direito, romperam a aliança eterna. Por isso, a maldição devorará a terra, e pecarão os seus habitantes; e por esta causa se tornarão insensatos os seus cultivadores. Transgridem as leis da letra e da graça, porque não querem guardar nem a lei da letra, como servos, nem a lei da graça, como filhos; mudam o direito natural, que é: Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti; rompem a aliança eterna que contraíram no Batismo. Por isso, a maldição da soberba devorará a terra, isto é, os terrenos, e os seus habitantes pecarão com o pecado da avareza; aos quais se diz no Apocalipse: Ai dos que habitam sobre a terra!; e se tornarão insensatos os que a cultivam com o pecado da luxúria, que é insensatez e demência.
 
       7.  No terceiro dia, disse Deus: Produza a terra erva verde etc. A terra, de tero, teris (esmagar), é o corpo de Cristo Cf. Is 53, 5, esmagado, na frase de Isaias, por causa dos nossos pecados; e esta terra foi escavada e lavrada por pregos e pela lança. Dela se diz: A terra escavada dará frutos no tempo desejado. A carne escavada de Cristo deu o reino celeste; produziu erva verde nos Apóstolos, semente de pregação nos mártires e árvores a darem frutos nos confessores e virgens. A fé, na primitiva Igreja, era como que erva tenra; por isso, diziam os Apóstolos nos Cânticos: A nossa irmã, isto é, a primitiva Igreja, é pequenina pelo número de fiéis, e não tem seios com que aleitar os seus filhos. De fato, ainda não fora engravidada pelo Espírito Santo. E por isso diziam: Que faremos à nossa irmã no dia do Pentecostes, em que deverá falar a linguagem do Espírito Santo? Desta fala disse o Senhor no Evangelho: Ele vos ensinará todas as coisas e sugerir-vos-á, isto é, subministrar-vos-á65, todas as coisas.
 
       8. No quarto dia, disse Deus: Façam-se dois luzeiros no firmamento. No firmamento, isto é, em Cristo, já glorificado pela ressurreição, existiram dois luzeiros: a claridade da ressurreição, que se nota no sol, e a incorruptibilidade da carne, que se nota na lua, tendo em conta o estado do sol e da lua antes da queda do primeiro pai, por causa de cuja desobediência todas as criaturas padecem detrimento. Donde a palavra do Apóstolo: Todas as criaturas gemem e estão como que com dores de parto até agora.
 
       9. No quinto dia, fez Deus as aves do céu; com isto concorda fielmente o quinto artigo, a saber, a Ascensão, em que o Filho de Deus, semelhante a uma ave, com a carne assumida, voou para a direita do Pai. Por isso, diz ele mesmo em Isaias: Eu chamo do oriente uma ave, e de uma terra longínqua o varão da minha vontade. Chamo do oriente, ou seja, do monte das Oliveiras, que se encontra a oriente, do qual se diz: O que sobe sobre o céu do céu, isto é, à igualdade do Pai; uma ave, isto é, o meu Filho; e duma terra longínqua, isto é, do mundo, o varão da minha vontade, que disse: O meu alimento é fazer a vontade do meu Pai, que me enviou.
 
       10. No sexto dia, disse Deus: Façamos o homem, etc. O sexto artigo da fé é o envio do Espírito Santo. Neste envio, a imagem de Deus, deformada e deturpada no homem, é reformada e iluminada mediante a inspiração do Espírito Santo, que inspirou no rosto do homem o sopro da vida, como se refere nos Atos dos Apóstolos: E, de repente, veio do céu um estrondo, como de vento veemente.
 
       E nota que bem se diz veemente o Espírito Santo, por tirar o ai eterno, ou por levar para as alturas o espírito. Daí a palavra do profeta David: Gravada está sobre nós, Senhor, a luz do teu rosto. O rosto do Pai é o Filho; assim como pelo rosto se conhece uma pessoa, assim pelo Filho conhecemos o Pai. A luz, pois, do rosto de Deus é o conhecimento do Filho e a iluminação da fé, que foi assinalada e impressa, como um caráter, no dia de Pentecostes nos corações dos Apóstolos, e desta forma o homem se tornou alma vivente.
 
       11. No sétimo dia, descansou Deus de todas as suas obras. E a Igreja, no sétimo artigo, descansará de todo o trabalho e suor, quando Deus enxugar toda a lágrima dos seus olhos, isto é, tirar toda a causa do choro; então ela será louvada pelo seu esposo e merecerá ouvir: Dai-lhe do fruto das suas mãos; e as suas obras louvem-na na assembleia do juízo, quando ela, juntamente com os seus filhos, ouvir o cicio da aura ligeira: Vinde, benditos etc.
 
       Com estes sete dias e sete artigos da fé, brevemente descritos no tijolo, apressemo-nos a descrever moralmente as seis virtudes da alma fiel e as seis horas da leitura evangélica, fazendo-as concordar com o dinheiro e com o sábado.

Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Imagem: Reconstrução de um retábulo de Guercino: A Senhora com criança e Santo Antônio de Pádua para os Capuchinhos de Verona
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