O Natal de Greccio e a encarnação como inspiração para espiritualidade Franciscana

Em meio as celebrações dos 800 anos do primeiro presépio, acompanhe o Artigo de Frei Gilberto Sales que nos apresenta uma reflexão sobre o mistério da encarnação como algo central na espiritualidade franciscana.

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13.12.2023 08:35:00 | 7 minutos de leitura

O Natal de Greccio e a encarnação como inspiração para espiritualidade  Franciscana

"Celebrava com inefável alegria, mais que todas as festas, a natividade do Menino Jesus, afirmando que era a festa das festas, em que Deus, feito um menino pobrezinho, dependeu de peitos humanos. Beijava em pensamento as imagens desses membros infantis (...) 
(...) Certa vez em que os frades discutiam se podiam comer carne porque era uma sexta feira, disse a Frei Morico: irmão, cometes um pecado chamando de sexta feira (em italiano sexta feira se diz venerdí, ou seja dia de Vênus) o dia que o menino nasceu para nós. Quero que nesse dia até as paredes comam carne. Se não podem, sejam esfregadas com carne pelo menos por fora." 1 TC 151.

A espiritualidade franciscana é extremamente concreta, objetiva. Isso tem suas raízes no próprio Francisco, que conseguia contemplar a Deus na concretude da criação. Ele não era um homem abstrato, teórico, mas um homem da práxis. Por isso, o estilo de vida que ele inaugura é um convite a sair dos claustros, onde se vivia uma fuga do mundo para se encontrar a Deus, para um itinerância que fazia do mundo o seu claustro.

Dessa forma, o carisma franciscano é um convite para uma contemplação de Deus nas criaturas, naquilo que é empírico e palpável. A filosofia moderna e contemporânea, segundo o pensamento de autores como Fichte, Heidegger e Sartre chamam isso de facticidade ( Cf. DUROZOI, G. e ROUSSEL, A. Dicionário de Filosofia. Tradução de Marina Appenzeller). Esse termo quer indicar que a existência é algo constatável, sensível, concreto. A partir disso, para os filósofos, é que se pode considerar o valor do mundo e das coisas existentes.

O mistério da encarnação quer justamente afirmar esse valor da criação e é um convite para que o homem entenda o seu lugar nela, internalizando a verdade fundamental de que o mundo, a criação, são mediações necessárias para se  chegar a Deus.

Neste sentido, o mistério da encarnação é algo central na espiritualidade franciscana. Deus se faz carne, se faz matéria, toma a forma humana para, a partir daí, salvar o homem. Assim, a carne humana é salva porque é assumida integralmente pelo salvador. E isso se dá no tempo, na história. Por isso os evangelhos de Mateus e Lucas são enfáticos: “tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judeia, no tempo do rei Herodes...” (Mt 2, 1); “No sexto mês, o Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré” (Lc 1, 26).

Francisco tem isso diante de si: Deus se faz história para resgatar a história dos homens. Esse fato é digno de admiração e de alegria, por isso seus biógrafos dizem de sua estupefação quando celebra o Natal do Senhor, a festa da encarnação do verbo.

No carisma franciscano existem três lugares teológicos por excelência: A  encarnação do verbo, a Eucaristia e a Cruz. Nesses três momento se vê a  potência salvadora de Deus e seu modo de revelar-se e permanecer no mundo,  unidos aos homens. Imbuído dessa certeza e querendo tornar mais sensíveis essas realidades, no  Natal de 1223, na pequena cidade de Greccio, na Itália, São Francisco torna  visível a cena da encarnação criando o primeiro presépio. Assim nos fala seu  primeiro biógrafo, Tomás de Celano:

"Gostava tanto de lembrar a humildade de sua encarnação e o amor de  sua paixão, quem nem queria pensar em outras coisas. Precisamos recordar com todo respeito e admiração o que fez no dia do Natal, no povoado de Greccio, três anos de sua gloriosa morte. Uns quinze dias antes do Natal, São Francisco mandou chamar o senhor João, seu amigo, e disse: “se você quiser que celebremos o Natal em Greccio, é bom começar a preparar diligentemente e desde já o que vou dizer. Quero lembrar o menino que nasceu em Belém, os apertos que passou, como foi posto num presépio, e contemplar com os próprios olhos como ficou em cima da palha, entre o boi e o burro. Ouvindo isso, o homem bom e fiel correu imediatamente e preparou no lugar indicado o que o santo tinha pedido. (...) A noite ficou iluminada como o dia: era um encanto para os homens e para os animais. O povo foi chegando e se alegrou com o mistério renovado em uma alegria toda nova. O bosque ressoava com as vozes que ecoavam nos morros. Os frades cantavam, dando os devidos louvores ao Senhor e a noite inteira se rejubilava. O santo estava diante do presépio a suspirar, cheio de piedade e de alegria. A missa foi celebrada ali mesmo no presépio, e o sacerdote sentiu uma consolação jamais experimentada."

Essa narração carrega alguns elementos importantes sobre o espírito que  motivou Francisco a criar o presépio. O primeiro dado importante que se deve observar é que vemos um Francisco já plenamente maduro na fé e em suas convicções, a cena se passa apenas três anos antes de sua morte e um ano antes da impressão de seus estigmas, da sua plena configuração a Cristo. Franscisco quer dar visibilidade àquilo que procurou viver e encarnar em sua própria vida: o Evangelho. Assim, fazer a representação do Natal é, para Francisco, relembrar aquilo que o motivou a abandonar o lar paterno e abraçar a radicalidade da boa nova de Jesus Cristo.

O presépio de Greccio é ainda a maneira que Francisco intuiu de ter sempre diante de si a realidade da preferência pelos pobres, haja vista que, segundo o trecho, ele quis ver com seus próprios olhos a pobreza, a indigência que Deus  abraçou em sua encarnação.

O presépio, portanto, nos lembra daqueles tantos indigentes e pobres que são invisibilizados todos os dias. Francisco convida a um olhar mais atento e sensível à realidade que circunda cada indivíduo, a fim de fazer despertar do torpor, que muitas vezes acometem os homens. Olhar os irmãos e irmãs a partir dessa perspectiva leva a construção da fraternidade, onde todos são olhados com mais atenção e misericórdia.

O Natal de Greccio é ainda uma contemplação da situação criatural de cada homem e mulher, que enquanto peregrino sobre a terra, está em vias de união com o criador. Deus feito homem é a lembrança mais perene de que toda a criação é convidada a entrar na dinâmica e a participar da vida trinitária. Esta visão contemplativa alarga os horizontes, permite que se perceba a gratuidade do amor de Deus para com cada pessoa humana. 

Deus é total doação, é total autodifusão. Ele quer que cada homem e mulher assuma sua qualidade e sua dignidade de imagem e semelhança. Assim, hoje, 800 anos depois do gesto de São Francisco, cada um é convidado a contemplar no presépio essa realidade maravilhosa. Dessa maneira, fazemos eco ao convite do Papa Francisco para a contemplação do presépio:

"Queridos irmãos e irmãs, o presépio faz parte do suave e exigente processo de transmissão da fé. A partir da infância e, depois, em cada idade da vida, educa-nos para contemplar Jesus, sentir o amor de Deus por nós, sentir e acreditar que Deus está conosco e nós estamos com Ele, todos filhos e irmãos graças àquele Menino Filho de Deus e da Virgem Maria. E educa para sentir que nisto está a felicidade. Na escola de São Francisco, abramos o coração a esta graça simples, deixemos que do encanto nasça uma prece humilde: o nosso “obrigado” a Deus, que tudo quis partilhar conosco para nunca nos deixar sozinhos." (. Papa Francisco: Carta Apostólica ADMIRABILE SIGNUM nº 10 - sobre o significado e valor do presépio.)

Fonte: Frei Gilberto Sales OFM
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