SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: A cegueira das almas
A partir do Evangelho de São Lucas 18. 31-43, Santo Antônio apresenta uma reflexão a cerca da cegueira das Almas, no domingo que antecede o tempo Quaresmal.
Sermões
30.08.2022 07:59:31 | 13 minutos de leitura

1. Estava sentado à borda da estrada um cego. E clamava: Filho de David, tem piedade de mim!
Diz-se no primeiro livro dos Reis: Samuel tomou uma lentícula de óleo e derramou-o sobre a cabeça de Saul. Samuel interpreta-se postulado, e significa o pregador, postulado com as preces da Igreja por Jesus Cristo, que diz no Evangelho: Rogai ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe. Este deve tomar uma lentícula de óleo, que é um vaso quadrangular como o é a doutrina evangélica. Diz-se quadrangular, por causa dos quatro evangelistas. E dela deve derramar o óleo da pregação sobre a cabeça de Saul, isto é, sobre o entendimento do pecador. Saul interpreta-se o que abusa, e significa bem o pecador, que abusa dos dons da graça e da natureza.
E nota que o óleo unge e ilumina. Assim o pecador unge a pele inveterada dos dias maus e endurecida pelos pecados, a saber, unge a consciência do pecador e torna-a suave ao tato; ou então, unge o atleta de Cristo e envia-o para a batalha a vencer as potestades aéreas. Esta é a razão por que se diz no terceiro livro dos Reis que Sadoc ungiu Salomão em Gion. Sadoc interpreta-se justo e significa o pregador, que, à semelhança do sacerdote, oferece um sacrifício de justiça na ara da Paixão do Senhor. Ele ungiu Salomão, que se interpreta pacífico, em Gion, que se interpreta luta; o pregador, de fato, com o óleo da pregação deve ungir o pecador convertido na luta, para que não consinta na sugestão do diabo, esmague a carne sedutora, despreze o mundo enganador. O óleo também ilumina, porque a pregação ilumina o olho da razão, a fim de poder ver o raio do verdadeiro sol. Em nome, portanto, de Jesus Cristo, receberei a lentícula desde santo Evangelho, e dele derramarei o óleo da pregação, com que serão iluminados os olhos deste cego, do qual se escreve: Um cego estava sentado etc.
2. Neste domingo diz-se o Evangelho da cura do cego, e nele se menciona a Paixão de Cristo; e lê-se e canta-se a história da viagem de Abrãao e da imolação do seu filho Isaac. E lê-se no Intróito da missa: Sê para mim um Deus protetor. Reza-se a Epístola de S. Paulo aos Coríntios: Se falar a língua dos homens e dos anjos, etc. Portanto, para honra de Deus e iluminação da vossa alma, concordemos tudo isso. I – A cegueira das almas.
3. Um cego estava sentado etc. Omitidos todos os outros cegos curados, só queremos mencionar três: o primeiro é o cego de nascença do Evangelho, curado com lodo e saliva; o segundo é Tobias que cegou com excremento de andorinhas, e se curou com fel de peixe; o terceiro é o bispo de Laodicéia, ao qual diz o Senhor no Apocalipse: Não sabes que és um infeliz e miserável, pobre, cego e nu. Aconselho-te que me compres ouro provado no fogo, para te fazeres rico, e te vestires com roupas brancas, e não se descubra a verginha da tua nudez, e unge os teus olhos com um colírio, para que vejas. Vejamos o que significa cada uma destas coisas.
O cego de nascença significa, no sentido alegórico19, o gênero humano, tornado cego nos protoparentes. Jesus restituiu-lhe a vista, quando cuspiu em terra e lhe esfregou os olhos com lodo. A saliva, descendo da cabeça, significa a divindade, a terra, a humanidade; a união da saliva e da terra é a união da natureza humana e divina, com que foi curado o gênero humano20 E estas duas coisas significam as palavras do cego sentado à borda do caminho e a clamar: Tem piedade de mim (o que diz respeito à divindade), Filho de David (o que se refere à humanidade).
4. No sentido moral, o cego significa o soberbo. A este respeito lemos no profeta Abdias: Ainda que te eleves como a águia e ponhas o teu ninho entre os astros, eu te arrancarei de lá, diz o Senhor. A águia, voando mais alto que todas as aves, significa o soberbo, que deseja a todos parecer mais alto com as duas asas da arrogância e da vanglória. É a ele que se diz: Se entre os astros, isto é, entre os santos, que neste lugar tenebroso brilham como astros no firmamento, puseres o teu ninho, isto é, a tua vida, dali te arrancarei, diz o Senhor. O soberbo, pois, esforça-se por colocar o ninho da sua vida na companhia dos santos. Donde a palavra de Job: A pena do avestruz, isto é, do hipócrita, é semelhantes às penas da cegonha e do falcão, isto é, do homem justo. E nota que o ninho em si tem três caracteres: No interior é forrado de matérias brandas; externamente é construído de matérias duras e ásperas; é colocado em lugar incerto, exposto ao vento. Assim a vida do soberbo tem interiormente a brandura do deleite carnal, mas é rodeada no exterior por espinhos e lenhas secas, isto é, por obras mortas; também está colocada em lugar incerto, exposta ao vento da vaidade, porque não sabe se de tarde, se de manhã desaparecerá. E isto é o que se conclui: De lá eu te arrancarei, ou seja, arrancar-te-ei para te lançar no fundo do inferno, diz o Senhor. Por isso, escreve-se no Apocalipse: Quanto ela se glorificou e viveu em delícias, tanto lhe daí de tormentos.
5. E nota que este cego soberbo é curado com saliva e lodo. Saliva é o sêmen do pai derramado na lodosa matriz da mãe, onde se gera o homem miserável. A soberba não o cegaria se atendesse ao modo tão triste da sua concepção. Daí a fala de Isaías: Considerai a rocha donde fostes tirados. A rocha é o nosso pai carnal; a caverna do lago é a matriz da nossa mãe. Daquele fomos cortados no fétido derrame do sêmen; desta fomos tirados no doloroso parto. Por que te ensoberbeces, portanto, ó mísero homem, gerado de tão vil saliva, criado em tão horrível lago e ali mesmo nutrido durante nove meses pelo sangue menstrual? Se os cereais forem tocados por esse sangue não germinarão, o vinho novo azedará, as erva morrerão, as árvores perderão os frutos, a ferrugem corroerá o ferro, enegrecerão os bronzes e se dele comerem os cães, tornar-se-ão raivosos, e com as suas mordeduras farão enlouquecer as pessoas. Além disso, as próprias mulheres, que têm menos necessidade quando se encontram nas suas regras, não observam os homens com olhares inocentes. Sujam os espelhos com o demasiado uso, ao ponto de enfraquecer o fulgor da vista e o esplendor apagado do rosto perder o ciúme natural, e a face, duma esplendência baça, cobrir-se duma espécie de caligem. Ó homem infeliz, ó soberbo cego, se observares, de espírito atento, estas coisas e te considerares nascido de lodo e de saliva, verdadeiramente, verdadeiramente serás curado, verdadeiramente te humilharás. E que a sobredita sentença de Isaías se entenda da geração carnal, mui abertamente se mostra quando se ajunta: Lançai os olhos para Abraão, vosso pai, e para Sara, que vos deu à luz. A este soberbo cego manda o Senhor: Saí da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai etc. Nota aqui três gêneros de soberba: contra o inferior, contra o igual e contra o superior. O soberbo conculca, despreza e ultraja. Conculca o inferior, como se fosse terra – que vem de tero, teris, esmagar; despreza o igual, como se fosse da parentela, pois o soberbo despreza e escandaliza facilmente os parentes e afins; ultraja também o superior, como se fosse a casa do pai. O superior chama-se casa do pai, porque debaixo dele o súdito, como filho em casa paterna, deve esconder-se da chuva da concupiscência carnal, da tempestade da perseguição demoníaca, do ardor da prosperidade mundana. Mas o cego soberbo, com o insulto feito de nariz enrugado, ultraja o superior. Diz, portanto, o Senhor: Sai, ó soberbo cego, da tua terra, para não conculcares o inferior, sai da tua parentela, para não desprezares o igual; sai da casa do teu pai, para não ultrajares o superior. 6. Segue: E vai para a terra que eu te mostrar. A terra é a humanidade de Jesus Cristo, de que diz o Senhor a Moisés no Êxodo: Tira o calçado dos teus pés, porque o lugar em que estás é terra santa. O calçado são as obras mortas, que deves tirar dos pés, isto é, dos afetos da tua alma; porque a terra, ou seja, a humanidade de Jesus Cristo, em que estás pela fé, é santa e te santifica a ti, pecador. Vai, portanto, ó soberbo, para esta terra, considera a humanidade de Cristo, atende à sua humildade, espreme o tumor do teu coração. Caminha, sim, com os passo do amor, aproxima-te com a humildade do coração, dizendo com o Profeta: Na tua verdade me humilhaste. Ó Pai, na tua verdade, isto é, no teu Filho, humilhado, pobre e peregrino, me humilhaste; humilhado, sim, no ventre da Virgem; pobre, no curral de gado; peregrino, no patíbulo da cruz. De fato, nada humilha tanto o pecador soberbo como a humilhação da humanidade de Jesus Cristo. Donde Isaías: Oxalá romperas tu os céus e desceras de lá! Os montes se derreteriam diante da tua face. Diante da sua face, quer dizer, da presença da humanidade de Jesus Cristo, os montes, ou seja, os soberbos, desaparecem e desfalecem, quando consideram a divina cabeça inclinada no ventre da Virgem Mãe. Vai, portanto, para a terra que te mostrei a dedo no rio Jordão, dizendo: Este é o meu Filho amado, em que pus as minhas complacências. Serás também tu filho amado, em que pus as minhas complacências, filho adotivo pela graça, se, com o exemplo do meu Filho, igual a mim, fores humilhado; mostrei-to, para que do modelo da sua vida regules o modo do teu viver, e assim formado recebas luz e assim posas ouvir: Olha, a tua fé te salvou, te curou. 7. O segundo cego, feito tal pelo excremento de andorinhas, mas curado com fel de peixe, é Tobias, de que se diz no livro do mesmo: Sucedeu um dia que, cansado da sepultura, indo para sua casa, deitou-se junto duma parede e adormeceu, e enquanto dormia caiu-lhe dum ninho de andorinhas um pouco de esterco sobre os olhos, e ficou cego. Vejamos brevemente o que significam Tobias, a sepultura, a casa, a parede, o dormirm o ninho, as andorinhas e o seu esterco. Tobias é o justo tíbio; a sepultura, a penitência; a casa, a satisfação da carne; a parede, a sua voluptuosidade; o dormir, o torpor da negligência; as andorinhas, os demônios; o ninho, o consentimento do espírito efeminado; o esterco, a gula e a luxúria. Digamos, portanto: Tobias, fatigado da sepultura, etc. Tobias significa o justo tíbio, do qual diz o Senhor no Apocalipse: Porque não és frio pelo temor da pena, nem quente pelo amor da graça, mas porque és tíbio, por isso te começarei a vomitar da minha boca. Assim como a água morna provoca o vômito, assim a tibieza e a negligência expulsam do ventre da divina misericórdia o ocioso e o tíbio. Maldito, diz Jeremias, o que fizer a obra do Senhor com negligência. Este homem fatigado de enterrar mortos vem para casa, quando se aborrece do trabalho da penitência, na qual e debaixo da qual deve esconder os defuntos, isto é, os pecados mortais, para deles se dizer: Felizes aqueles cujos pecados são encobertos. E então volta-se, abrasado em desejos, para a satisfação do corpo, contra a advertência do Apóstolo. Por isso, ajunta-se: Deitou-se junto da parede. A parede é o prazer carnal. Assim como na construção duma parede se põe pedra sobre pedra e se ajusta com argamassa, também no prazer carnal, o pecado de vista se junta ao pecado do ouvido, e o pecado do ouvido ao pecado do gosto, e assim por diante, e se liga fortemente à argamassa do mau hábito. E assim dorme profundamente, alquebrado pelo torpor da negligência. E então cai o esterco das andorinhas sobre os olhos do adormecido. As andorinhas, por causa do seu vôo rapidíssimo, significam os demônios, cuja soberba quis sobrevoar os astros do céu, a altura das nuvens, até se igualar com o Pai e assemelhar-se com o Filho.O ninho dos demônios é o consentimento do espírito efeminado, construído com as plumas da vanglória e o lodo da lascívia. De tal ninho cai esterco de gula e luxúria sobre os olhos do adormecido Tobias, e desta maneira se cegam os olhos, ou seja, a razão e a inteligência da infeliz alma. 8. Atendei, caríssimos, e acautelai-vos de tão infeliz procedimento, pois do tédio de enterrar mortos, isto é, do tédio da penitência, se chega à casa da satisfação carnal, colocada, a pretexto de necessidade, junto da parede do prazer, no qual, ao mesmo tempo que se abate com o sono da negligência, se cega com o esterco da luxúria. Donde o Poeta: Pergunta-se por que é que Egisto cometeu adultério. A causa é evidente: vivia ocioso. Clama, portanto, ó Tobias tíbio, ó cego luxurioso, que estás deitado junto da parede: Tem piedade de mim, Filho de David. Eis a razão porque este cego pede no Intróito da missa de hoje seja iluminado, dizendo: Sê para mim um Deus protetor etc. Nota que pede quatro coisas: Primeira, quando diz: Sê para mim um Deus protetor, para que, de braços estendidos na cruz, me protejas e defendas, como a galinha protege e defende os pintainhos debaixo das asas; a segunda, quando diz: E um lugar de refúgio, para que no teu lado, traspassado pela lança, encontre lugar de refúgio, onde possa esconder-me da face do inimigo; a terceira, quando diz: Porque tu és o meu firmamento, para não cair, e o meu refúgio, a fim de que, se cair, me abrigue junto de ti e não junto de outrem; a quarta, quando diz: E por causa do teu nome, Que e Filho de David, serás para mim, que sou cego, guia, porque me darás a mão da misericórdia, e me alimentarás com o leite da tua graça. Tem, portanto, piedade de mim, Filho de David.
Fonte: Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I) | Tradução por Henrique Pinto Rema. Lello e Irmão Editores, Porto, 1987; págs 55-77.
Imagem: Santo Antônio de Pádua (1670) de Claudio Coello