SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: Domingo de Ramos
Iniciando a Semana Maior, acompanhemos um Sermão de Santo Antônio sobre o Domingo de Ramos a partir do texto bíblicos que narra a entrada de Jesus em Jerusalém.
Sermões
02.04.2023 13:51:22 | 28 minutos de leitura

EXÓRDIO - SERMÃO SOBRE A PAIXÃO DE CRISTO
1. Naquele tempo, "Aproximando-se Jesus de Jerusalém, e chegando a Betfagé, junto ao Monte das Oliveiras" (Mt 21,1) etc.
Jeremias fala assim à alma pecadora: "Sobe a Galaad e toma o bálsamo, ó virgem filha do Egito" (Jr 46,11). A filha do Egito é a alma cegada pelos prazeres deste mundo: Egito interpreta-se "trevas". De fato, Jeremias continua: "De que maneira o Senhor, na sua ira, cobriu" , isto é, permitiu que fosse coberta, "de escuridão a filha de Sião?" (Lm 2,1), isto é, a alma, que deve ser filha de Sião? Ela é chamada virgem porque estéril de boas obras. E de novo Jeremias: "O Senhor pisou, como num lagar, a virgem, filha de Sião" (Lm 1,15), isto é, condenou-a à pena eterna, porque ficou estéril da prole das boas obras. E lhe diz: "Sobe", com os pés do amor, com os passos da devoção, "a Galaad", que se interpreta "montão de testemunhos"; isto é, sobe sobre a cruz de Jesus Cristo, sobre a qual acumularam-se numerosos testemunhos de nossa redenção, quer dizer, os pregos, a lança, o fel, o vinagre e a coroa de espinhos; e dali "toma o bálsamo".
O bálsamo é uma lágrima, uma gota que destila de uma árvore. O melhor bálsamo de todos é o do terebinto (a terebintina). Ela representa a gota do sangue preciosíssimo que fluiu da árvore, plantada no jardim das delícias (cf. Gm 2,8), "ao longo do curso das águas" (SI 1,3), para a reconciliação do gênero humano.
Toma, pois, Ó alma, este bálsamo e unge as tuas feridas, porque ele é o medicamento mais poderoso e eficaz para saná-las, para obter o perdão e para infundir a graça. Portanto, sobe a Galaad, isto é, sobe com Jesus a Jerusalém, porque também ele ali subiu no dia de festa (cf. Jo 7,8). De fato, o evangelho de hoje diz: Partindo Jesus para Jerusalém etc.
2. Neste evangelho devem ser observados quatro momentos. Primeiro, Jesus que se aproxima de Jerusalém: "Aproximando-se" etc. Segundo, o envio dos dois discípulos para a aldeia: "Então mandou dois de seus discípulos" etc. Terceiro, o assentar-se do rei manso, pobre e humilde sobre uma jumenta e seu jumentinho: "Eis que teu rei vem, sentado sobre uma jumenta" etc. Quarto, o entusiasmo e as aclamações da multidão: "Hosana ao Filho de Davi", e "Uma enorme multidão" etc.
I - JESUS APROXIMA-SE DE JERUSALÉM
3. "Aproximando-se Jesus de Jerusalém..." etc. Observa que o Senhor, quando foi a Jerusalém, fez este percurso: primeiro chegou a Betânia, de Betânia dirigiu-se a Betfagé, de Betfagé ao Monte das Oliveiras, e do Monte das Oliveiras chegou a Jerusalém. Veremos o que significa tudo isso: primeiro o significado alegórico e depois, o moral.
Betânia, que se interpreta "casa da obediência", ou "casa do dom de Deus", ou ainda "casa agradável ao Senhor" », representa a Virgem Maria, que obedeceu à voz do anjo e, por isso, mereceu acolher o dom celeste, o Filho de Deus, e assim foi agradável a0 Senhor mais do que qualquer outra criatura. De fato, dela se diz nos Provérbios: «Muitas filhas ajuntaram riquezas; tu excedeste a todas" (Pr 31,29). Nenhum santo acumulou em sua alma tanta riqueza de virtude quanto a Virgem Maria, que por sua extraordinária humildade, pela flor incontaminada da virgindade, mereceu conceber e dar à luz o Filho de Deus, "que está acima de todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos" (Rm 9,5).
E desta Betânia Jesus dirigiu-se a Betfagé, que se interpreta "casa da boca". Ela representa a pregação de Jesus. Por isso chegou antes a Betânia, isto é, assumiu a carne humana da Virgem, para depois dedicar-se à pregação. Ele mesmo diz: "Vamos para as cidades e aldeias vizinhas, a fim de que eu pregue também lá, pois para isso é que eu vim" (Mc 1,38).
E de Betfagé dirigiu-se ao Monte das Oliveiras, isto é, da misericórdia. Éleos (termo grego que se assemelha ao latim olea, oliveira) interpreta-se "misericórdia". O Monte das Oliveiras está a indicar a grandeza dos milagres que Jesus misericordioso e benigno operou em favor dos cegos, dos leprosos, dos possuídos pelo demônio e dos MOFFOs. E todos estes miraculados dizem por boca de Isaías: "Tu, Senhor, és nosso pai, nosso redentor; este é teu nome desde sempre" (Is 63,16). Nosso pai pela criação, nosso redentor pelos milagres operados; este é o teu nome desde sempre porque és bendito por todos os séculos.
E do Monte das Oliveiras foi para Jerusalém, a fim de cumprir a obra de nossa salvação, para a qual tinha vindo; para resgatar com seu sangue das mãos do diabo o gênero humano, escravo no cárcere do inferno há mais de cinco mil anos. Portanto, Cristo nos libertou desse modo, como aquele pássaro, que se chama avestruz, liberta seu filhote.
Narra-se que o sapientíssimo Rei Salomão possuía uma espécie de pássaro, precisamente um avestruz, cujo filhote havia prendido num vaso de vidro: a mãe o olhava cheia de dor, mas não podia tê-lo. Finalmente, pelo extraordinário amor que nutria pelo filho, foi ao deserto onde encontrou um verme; levou-o consigo e o despedaçou sobre o vaso de vidro. O poder do sangue do verme quebrou o vidro e assim o avestruz libertou seu filhote. Vejamos o significado que têm o pássaro, o filhote, o vaso de vidro, o deserto, o verme e seu sangue.
Este pássaro simboliza a divindade; seu filho representa Adão e sua descendência; o vaso de vidro, o cárcere do inferno; o deserto, o seio virginal; o verme, a humanidade de Cristo; o sangue, a sua paixão.
Para libertar o gênero humano do cárcere do inferno e da mão do diabo, Deus veio para o deserto, isto é, para o seio da Virgem, da qual assumiu o "verme" , isto é, a humanidade. Ele próprio disse: "Eu sou um verme e não um homem" apenas (SI 21,7), porque era Deus e homem. Despedaçou este verme sobre o patíbulo da cruz e de seu lado saiu o sangue, cujo poder quebrou as portas do inferno e libertou o gênero humano da mão do diabo.
4. Vejamos também que significado têm Betânia, Betfagé, o Monte das Oliveiras e Jerusalém.
Diz João no seu evangelho: "Seis dias antes da Páscoa, isto é, no sábado que precede o Domingo de Ramos, Jesus foi a Betânia, onde morrera Lázaro, que Jesus tinha ressuscitado. Lá deram-lhe uma ceia; Marta servia e Lázaro era um dos que estavam à mesa com ele. Então, Maria tomou uma libra de bálsamo feito de nardo puro (pisticus) de grande preço, ungiu os pés de Jesus" (Jo 12,1-3). Mateus e Marcos, porém, dizem que ela derramou um nardo perfumado sobre a cabeça de Jesus, que estava à mesa (cf. Mt 26,7; Mc 14,3).
Betânia interpreta-se "casa da aflição". E esta é a contrição do coração, da qual fala o profeta: "Estou aflito e grandemente abatido; o gemido do meu coração arranca-me rugidos" (SI 37,9). Nesta casa foi ressuscitado Lázaro, cujo nome interpreta-se "ajudado". De fato, na casa da contrição o pecador é ressuscitado, é ajudado com a graça divina e, portanto, diz com o profeta: "Nele esperou o meu coração e fui ajudado" (S1 27,7). Quando o coração espera, a graça vem em ajuda. E o coração pode esperar na indulgência e no perdão, quando o atormenta a dor da contrição pelo pecado cometido.
"Então deram-lhe uma ceia e Maria servia." As duas irmãs do pecador ressuscitado da morte do pecado, Marta, cujo significado é "que provoca" ou "que irrita", e Maria, que se interpreta "estrela-do-mar", são o temor da pena e o amor da glória. O temor da pena provoca o pecador ao pranto e o estimula quase como um investigador a procurar o pecado e a confessá-lo com todas as suas circunstâncias. O amor da glória ilumina, o temor impele, o amor conforta.
"Marta", diz, "servia". O que serve o temor? Certamente o pão da dor e o vinho da compunção. Esta é a ceia de Jesus, e dela diz Mateus: "Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, disse a bênção, partiu-o e o deu aos seus discípulos... E tomando o cálice, deu graças e deu-lhes dizendo: Bebei dele todos" (Mt 26,26-27).
"Lázaro, pois, era um dos comensais, junto com Jesus." Para não parecer um fantasma, mas que sua ressurreição era evidente, ele comia e bebia. Que grande graça! O pecador, que antes estava deitado no túmulo, agora está acomodado à mesa e se banqueteia com Jesus e seus discípulos; ele que antes desejava encher o estômago, isto é, a mente, com as landes dos porcos, isto é, com as imundícies dos demônios e ninguém lhe dava (cf. Lc 15,16).
"Maria então tomou uma libra de verdadeiro nardo precioso." A libra consta de doze onças: e aqui temos uma espécie de peso perfeito, porque consta de tantas onças quantos são os meses do ano. Ora, a libra é chamada assim porque é "livre" e porque compreende em si mesma todos os pesos. Nardo verdadeiro (genuíno) em latim é chamado pisticus, isto é, autêntico, sem contrafações e deriva do grego pistis, que quer dizer fé.
A libra, composta de doze onças, é a fé dos doze apóstolos, livre e perfeita. Maria, pois, isto é, o amor da glória celeste, unge a cabeça da divindade e os pés da humanidade com uma libra de nardo genuíno, reconhecendo que Cristo é Deus e homem, que nasceu e sofreu a paixão. E assim, a casa, isto é, a consciência do peni-tente, encheu-se com o perfume do unguento (cf. Jo 12,3), dizendo com a esposa do Cântico dos Cânticos: O Senhor Jesus, com a corda do teu amor arrasta-me atrás de ti, para que eu corra no perfume dos teus unguentos (cf. 1,3), para que de Betânia eu chegue a Betfagé.
5. Betfagé interpreta-se "casa da boca", e está a indicar a confissão, na qual devemos ser como residentes, não como hóspede de uma noite que passou (cf. Sb 5,15), para que não nos aconteça aquilo que diz Jeremias: "Assim fala o Senhor a este povo, que gosta de mover os seus pés, e não repousa, nem agrada ao Senhor: Agora o Senhor se lembrará de suas maldades, e visitará [punirá] os seus pecados" Jr 14,10).
"E de Betfagé foi ao Monte das Oliveiras." Recorda que o Monte das Oliveiras era chamado de "Monte das Três Luzes», porque era iluminado pelo sol, por si mesmo e pelo templo: pelo sol, porque voltado para o Oriente recebia seus raios; por mesmo pela abundância do óleo que produzia; pelo templo, por causa das lâmpadas que de noite ali ardiam e iluminavam também o monte.
O Monte das Oliveiras representa a importância da satisfação (penitência) à qual deve chegar o penitente da casa da confissão. E justamente a satisfação é chama. da "Monte das Três Luzes». De fato, parando na obra da penitência, o homem é iluminado pelo sol da justiça, Cristo Jesus, que diz de si mesmo: "Eu sou a luz do mundo" Jo 8,12); é iluminado por si mesmo, porque deve estar abastecido de óleo abundante, isto é, de misericórdia para si mesmo e para o próximo; com efeito, Jó diz: "Visitando teus semelhantes não pecarás" (Jó 5,24). Disse um santo: "Nunca a alma poderá ver melhor sobre si os seus semelhantes por meio da verdade, do que quando a carne se inclina abaixo de si para o seu semelhante por meio da caridade". Será iluminado também pelo templo, isto é, pela comunidade dos fiéis, aos quais diz o Apóstolo: "Santo é o templo de Deus, que sois vós" (1Cor 3,17).
E do Monte das Oliveiras foi para Jerusalém. Com efeito, estas três coisas, a contrição do coração, a confissão da boca e a obra de penitência, que satisfaz o débito do pecado, conduzem à luz, à Jerusalém celeste, à bem-aventurança eterna. Portanto, justamente se diz: "Jesus, tendo-se aproximado de Jerusalém..." etc.
II - O ENVIO DOS DOIS DISCÍPULOS À ALDEIA
6. "Jesus enviou dois dos seus discípulos dizendo-lhes: Ide à aldeia (castellum) que está diante de vós, e logo encontrareis presa uma jumenta e o seu jumentinho com ela; desprendei-a e trazei-a a mim (Mt 21,1-2). Vejamos o que representam em sentido moral os dois discípulos, a aldeia, a jumenta e seu jumentinho.
O discípulo é chamado assim porque aprende (discit) a disciplina. A aldeia (cas-tellum) é constituída de uma muralha que circunda totalmente uma torre, situada ao centro. O jumento, ou a jumenta, é chamado assim porque, digamos, "deixa as coisas altas" (latim: alta sinens); jumentinho (pullus) é como pollutus, impuro, manchado, porque nasceu há pouco. Portanto os dois discípulos do justo, que aprendem a disciplina da paz, são o desprezo do mundo e a humildade do coração.
Estes dois discípulos são Moisés e Aarão, que fazem sair os hebreus do Egito, são as duas varas que serviam para transportar a arca do testemunho, são os dois querubins que olham o "propiciatório" (a cobertura de ouro da arca), voltados um para o outro (cf. Ex 25,17-18).
Em Moisés, que, como diz o Apóstolo, "considerava maior riqueza o opróbrio de Cristo do que os tesouros dos egípcios" (Hb 11,26), é representado o desprezo do mundo. Em Aarão, que apagou o fogo e aplacou a ira de Deus para que não se enfurecesse sobre todo o povo (cf. Nm 16,46-49), é indicada a humildade do coração que apaga o fogo da sugestão diabólica e aplaca a ira da punição divina. Estes dois discípulos, como duas varas inflexíveis, carregam a arca do testamento, isto é, a doutrina de Jesus Cristo, ou a obediência ao prelado. Olham para o propiciatório, isto é, para o próprio Jesus Cristo, que é "propiciação pelos nossos pecados (cf. 1Jo 4,10); olham, direi ainda, para Cristo deitado na manjedoura, pregado na cruz, deposto no sepulcro.
O justo envia estes dois discípulos, dizendo: "Ide à aldeia [castelo] que está diante de vós". O castelo (aldeia) é constituído, como já dissemos, de um muro perimetral e de uma torre: no muro é indicada a abundância das coisas temporais, na torre, a soberba do diabo. Como no muro se sobrepõe pedra sobre pedra, e as pedras se ligam entre si com o cimento, assim na abundância das coisas temporais o dinheiro se acrescenta 20 dinheiro, casa une-se com casa, campo acrescenta-se a campo (cf. Is 5,8), e tudo se apega tenazmente com o cimento da cobiça. Desse muro diz Isaías: "Meu ventre estremece por Moab como uma harpa, e minhas entranhas pelo muro de tijolos cozidos [ao fogo]" (Is 16,11). E Jeremias, quase com as mesmas palavras: "O meu coração por causa de Moab ressoará como flauta; o meu coração imitará o som da flauta sobre os habitantes do muro de tijolos cozidos" (Jr 48,36). No ventre é designada a mente, na harpa ou na flauta, a melodia da pregação. Com coração e mente compungidos e com a melodia da pregação, Isaías e Jeremias, isto é, cada pregador, deve soar em Moab, que se interpreta "ao pai", isto é, ao pecador, que provém daquele pai que é o diabo, que constrói o muro de cozidos e de tijolos de argila, isto é, a abundância dos bens temporais: cozido, porque endurecido ao fogo da cobiça, de argila porque destinado a ruir. Igualmente, na torre é indicada a soberba do diabo. Esta é a torre de Babel, isto é, da confusão, a torre de Siloé que, como se lê no Evangelho de Lucas, ao cair matou dezoito homens (cf. Lc 13,4). O justo envia contra este castelo (aldeia), dois discípulos seus, isto é, o desprezo do mundo, para que faça ruir o muro da abundância transitória, e a humildade do coração, para que abata a torre da soberba.
7. E diz justamente: "que está diante [latim: contra] de vós". A abundância deste mundo é sempre contrária à pobreza, e a soberba, contrária à humildade. Nesse castelo encontra-se uma jumenta amarrada e com ela o seu jumentinho (o asnozinho). A jumenta, que deixa as coisas altas e caminha no plano, representa a vida dos clérigos e dos religiosos, que, abandonada a altura da contemplação, procede preguiçosa e fátua entre as baixezas do prazer carnal. Mas ai! com quantas correntes de prazer, com quantas cordas de pecados é mantida amarrada esta jumenta!
"E junto a ela um jumentinho" (asnozinho). Este filhote de jumenta representa o clérigo ou o religioso que, justamente é chamado jumentinho (pullus), porque é manchado (pollutus) por muitos vícios. É encontrado junto com a jumenta, agarrado às suas tetas, da gula e da luxúria, chupando por trás. De ambos lamenta-se o Senhor, com as palavras de Jeremias: "Cumulei-os de bens e adulteraram, e entregaram-se às suas paixões em casa da meretriz" (Jr 5,7). E mais adiante diz que o cinto de Jeremias estava apodrecido no Rio Eufrates, de modo que já não servia para mais nada (cf. 13,7). "O cinto da castidade de muitos clérigos e de muitos religiosos apodrece no Rio Eufrates, que se interpreta "fértil", e indica a abundância de bens temporais - de fato, da gordura provém a iniquidade -, de modo que eles não servem para mais nada, senão para serem lançados na estrumeira do inferno.
"Desamarrai-a e trazei-a a mim." O Senhor Jesus, o que é que dizes? Quem poderá desamarrar as correntes dos clérigos e dos falsos religiosos, as riquezas, a honras e os prazeres com os quais são mantidos amarrados, abater sua soberba e con duzi-los a ti? "Todos, diz Jeremias, são como um cavalo que corre velozmente" (Jr 8,6); "sua corrida tornou-se má, e sua fortaleza já é diferente" (Jr-23,10) da imagem, à semelhança da qual os criou (cf. Gn 1,26); ou também é diversa porque não estão contaminados por um vício só, mas por diversos vícios.
Por isso continua Jeremias: "Tanto o profeta como o sacerdote são imundos e na minha casa encontrei os males que eles lá cometeram. Todos se tornaram para mim como os habitantes de Sodoma e de Gomorra. Por isso, diz o Senhor: Eis que os alimentarei com absinto", isto é, com a amargura da morte eterna, "e lhes darei fel a beber" ›, isto é, com a amargura do remorso de consciência. "Porque dos profetas de Jerusalém é que se derramou a corrupção sobre toda a terra" (Jr 23,11.14-15).
"Desamarrai-os, diz Jesus, e trazei-os a mim." O desprezo do mundo e a humildade do espírito desamarram todos os laços e levam ao Senhor a jumenta e seu jumentinho.
III - JESUS, REI SENTANDO SOBRE A JUMENTA E SEU JUMENTINHO
8. "Tudo isto aconteceu para que se cumprisse aquilo que fora anunciado pelo pro-feta", isto é, por Zacarias: "Dizei à filha de Sião: Eis que o teu rei vem a ti manso, montado numa jumenta e num jumentinho, filho da que leva o jugo" (Mt 21,4-5). E estas são, literalmente, as palavras de Zacarias: "Salta de alegria, ó filha de Sião, enche-te de júbilo, ó filha de Jerusalém. Eis que o teu rei virá a ti, justo e salvador; ele é pobre, e vem montado sobre uma jumenta e sobre um jumentinho, filho de ju-menta. Então exterminarei as carroças de Efraim e os cavalos de Jerusalém; os arcos que servem na guerra serão quebrados" (Zc 9,9-10). Sião e Jerusalém são a mesma cidade, porque Sião é a torre de Jerusalém, e representa a Jerusalém celeste, na qual existia a eterna contemplação e a visão da paz absoluta.
A filha de Sião é a Santa Igreja, a quem, ó pregadores, deveis dizer: "Salta de alegria na fadiga, enche-te de júbilo no teu espírito". De fato, o júbilo prorrompe do coração com tão grande alegria quanta não tem condições de exprimir a eficácia da palavra. "Eis o teu rei", do qual diz Jeremias: "Ninguém é como tu, Senhor; tu és grande e grande em poder é teu nome. Quem não te temeria, rei das nações?" (Jr 10,6-7). Ele, lemos no Apocalipse, "em seu manto e em sua coxa traz escrito: Rei dos reis e Senhor dos senhores" (Ap 19,16).
O manto representa as suas faixas e a coxa é a sua carne. Com efeito, em Nazaré foi coroado de carne humana, como de um diadema; em Belém foi envolvido em faixas, como de púrpura. E estas foram as primeiras insígnias de seu reino. Sobre ambas as coisas enfureceram-se os judeus, como se tivessem querido privá-lo de seu reino; de fato, na paixão, Cristo foi por eles despojado de suas vestes e sua carne foi pregada à cruz com os pregos. Mas ali seu reino afirmou-se perfeitamente; de fato, depois da coroa e da púrpura, só lhe faltava o cetro. Recebeu também este quando, "carregando a sua cruz", como diz João, "saiu para o Calvário" (Jo 19,17). E Isaías: «Sobre seus ombros é posto o sinal de sua soberania" (Is 9,6); e o Apóstolo na Carta AOs Hebreus: "Nós vimos Jesus coroado de glória e de honra, por causa da morte que sofreu" (Hb 2,9).
9. "Eis que o teu rei vem a ti", isto é, para tua utilidade, "vem manso", para ser amado, e não vem com o poder para ser temido, "sentado sobre uma jumenta". Diz Zacarias: "Justo e Salvador, ele é pobre, montado sobre uma jumenta". As virtudes próprias de um rei são duas: a justiça e a piedade. Assim, o teu rei é justo porque, em vestes de justiça, retribui a cada um segundo suas obras; é manso e redentor, em vestes de piedade; e é também pobre: de fato, na epístola de hoje é dito: "Aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo" (Fl 2,7). Já que Adão no paraíso terrestre não quis servir o Senhor, o Senhor assumiu a condição de servo para servir o servo, para que no futuro o servo não se envergonhasse de servir o Patrão.
«Tornando-se semelhante aos homens e sendo reconhecido por condição como homem" (Fl 2,7). Por isso diz Baruc: "Assim, apareceu sobre a terra e viveu entre os homens" (Br 3,38). Aquele "como" (latim: ut) expressa a verdade, a realidade e não a semelhança. "Humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte e morte de cruz" (Fl 2,8).
Sobre isso diz Agostinho: O nosso Redentor armou ao nosso tirano (predador) a "cilada" de sua cruz e ali colocou como isca o seu sangue. Ele derramou o seu san-gue, mas que não era sangue de um devedor e, por isso, foi separado dos devedores (cf. Hb 2,14; 7,26). E o Bem-aventurado Bernardo diz de Cristo: "Teve em tão grande estima a obediência que preferiu perder a vida e não a obediência, feito obediente ao Pai até a morte", e a morte de cruz. Ele, que não teve onde pousar a cabeça (cf. Mt 8,20; Lc 9,58), a não ser sobre a cruz, onde "reclinando a cabeça, entregou o espírito" (Jo 19,30).
10. "Ele foi pobre." Realmente, diz Jeremias: "O esperança de Israel, seu salvador no tempo da tribulação, por que hás de ser nesta terra como um estranho, e como um viandante que renuncia parar? Por que te comportas como um homem errante, como um homem forte incapaz de salvar?" (Jr 14,8-9).
O nosso Deus, o Filho de Deus, aquele que esperávamos, chegou, e no tempo da tribulação, isto é, da perseguição diabólica, salvou-nos, e como um estranho, um estrangeiro, um peregrino habitou em nossa terra e a irrigou com a água de sua pregação. Ele foi como um viajante sem bagagem (levis), isto é, imune ao pecado; realizou sua missão porque "exultou como um gigante que percorre o seu caminho" (S1 18,6); reclinou, então, a cabeça sobre a cruz quando disse: "Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc 23,46), e depois ficou fechado no sepulcro três dias e três noites.
Aqui é chamado homem errante", segundo a avaliação dos judeus, que o consideravam ambulante e inconstante. Por isso, quando disse: «Tenho o poder de oferecer minha vida e retomá-la novamente" (Jo 10,18), "muitos deles diziam: Tem um demónio e está fora de si, por que ficais a escutá-lo?" (Jo 10,20). Por causa da condição de servo, que havia assumido, parecia-lhes privado do poder de salvar. Mas ele foi "o homem forte" que, com as mãos transpassadas pelos pregos, venceu o diabo. "Eis, pois, que o teu rei vem a ti, manso, montando numa jumenta e com um jumentinho, filho de jumenta", isto é, da mesma jumenta domada com o peso.
Ah! oxalá os clérigos e os religiosos quisessem acolher tão grande rei, um tão nobre "cavaleiro", e carregá-lo devotamente como fizeram aqueles mansos animais, para serem dignos de entrar com ele na Jerusalém celeste. Mas, assim como são filhos de Belial, isto é, "sem jugo" e, como diz Jeremias, "correram atrás daquilo que é vão e eles próprios se tornaram vaidade; e não perguntaram: Onde está o Senhor?" (Jr 2,5-6), quebraram o jugo e despedaçaram as cordas e disseram: "Não serviremos!" Por tudo isso, o Senhor, por boca de Zacarias, diz deles: "Exterminarei as carroças de Efraim e o cavalo de Jerusalém e será quebrado o arco de guerra". A carroça, que gira sobre quatro rodas, representa a abundância na qual vivem os clérigos; abundância que consiste em quatro coisas: na extensão das propriedades, no acúmulo das prebendas e das rendas, na suntuosidade dos alimentos e no luxo das vestes. O Senhor exterminará esta carroça e lançará ao mar do inferno quem está nela (cf. Ex 15,1); exterminará o cavalo, isto é, a soberba espumosa e desenfreada dos religiosos que, sob o hábito da religião, sob o pretexto da santidade, consideram-se grandes.
Mas o Senhor grande e poderoso, que olha os humildes e abate os grandes (cf. SI 137,6), expulsará este cavalo da Jerusalém celeste, na qual ninguém entrará, a não ser quem se humilhar como uma criança (cf. Mt 18,4), como ele se humilhou até a morte e morte de cruz.
11. Sentido moral. O rei que está montado sobre uma jumenta e seu jumentinho representa o justo que mortifica sua carne e freia seus estímulos. Diz Jeremias: "Virgem de Israel, ainda hás de ser adornada com teus tímpanos e hás de sair no coro dos festejantes" (Jr 31,4).
No tímpano, que é a pele de um animal morto esticada sobre um círculo de madeira, é indicada a mortificação da carne; no coro, no qual as vozes estão de acordo, é representada a concórdia da unidade. Portanto, a alma está ornada com os tímpanos e sai no coro dos festejantes quando está como que adornada pela mortificação da carne e da concórdia da unidade. Diz o profeta: "Com tímpanos e em coro louvai o Senhor" (SI 150,4).
Outro significado. O rei que está montado sobre a jumenta é o bispo, que governa o povo a ele confiado, do qual diz Salomão: "Bem-aventurada a terra", isto é, a Igreja, "cujo rei é de uma família ilustre e cujos príncipes", isto é, os prelados, "comem no tempo certo para se nutrirem e não para se entregarem à devassidão" (Ecl 10,17). "Comem só para viver e não vivem para comer" (Glosa); "comem no tempo certo", porque não procuram a recompensa aqui, mas olham para a futura. Este rei deve ser - como dissemos acima - manso, justo, salvador e pobre. Manso com os súditos; justo com os soberbos, derramando vinho e óleo; salvador em relação aos pobres; pobre, embora entre as riquezas. Ou ainda: manso se recebe uma injúria; justo exercendo a justiça para com todos; salvador com a pregação e com a oração; pobre pela humildade de coração e pelo desprezo de si.
Bem-aventurada a jumenta [sic], bem-aventurada a Igreja que tem semelhante governante (sessore). Ao contrário, o bispo deste nosso tempo é como Balaão, montado sobre a jumenta: ela via o anjo, enquanto Balaão não podia vê-lo (cf. Nm 22,21- 30). Balaão interpreta-se "que devora o povo". Um bispo escandaloso é uma árvore inútil: com seu mau exemplo demole a fraternidade dos fiéis e, primeiro, precipita-a no pecado e, depois, no inferno; com sua estultice, já que é também incapaz, perturba os fiéis; com sua avareza devora o povo. Ele, montado sobre a jumenta, não só não vê o anjo, mas vos garanto que vê o diabo, pronto a precipitá-lo no inferno. O povo simples, porém, que tem uma fé reta e que vive honestamente, vê o anjo do Supremo Conselho, reconhece e ama o Filho de Deus.
IV- O ENTUSIASMO E AS ACLAMAÇÕES DA MULTIDÃO A TESUS
12. "O povo, em grande número, estendia os seus mantos pelo caminho; outros cortavam ramos de árvores e os espalhavam pela estrada; as multidões que o precediam e as que iam atrás gritavam, dizendo: Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor!" (Mt 21,8-9). Presta atenção a estes três fatos: estendiam as próprias vestes, cortavam os ramos e gritavam Hosana! As vestes representam os membros do nosso corpo, com as quais se veste a alma: delas diz Salomão: "Em todo o tempo, as tuas vestes sejam brancas" (Ecl 9,8). Devemos estendê-lo sobre o caminho, quer dizer, estarmos prontos a expô-las à paixão e à morte pelo nome de Jesus, para merecer reavê-las gloriosas e imortais na ressurreição final, quando este corpo corruptível se vestir de incorruptibilidade e este corpo mortal se vestir de imortalidade (cf. 1Cor 15,53).
Os ramos são os exemplos dos Santos Padres, dos quais diz o Senhor: "Tomareis dos frutos da árvore mais formosa, espadas de palmeira, ramos de árvore frondosa, salgueiros da torrente e vos alegrareis diante do Senhor, vosso Deus" (Lv 23,40). A árvore mais formosa é a gloriosa Virgem Maria, cujos frutos foram a humildade e a pobreza. As palmeiras foram os apóstolos, que alcançaram a vitória sobre este mundo. As espadas são os frutos da palmeira antes de abrir-se: nelas vemos a fé, a esperança e a caridade dos apóstolos. A árvore frondosa é a cruz de Cristo, que alargou os densos ramos da fé para todo o mundo.
Os ramos desta árvore foram as quatro extremidades da cruz, às quais foram pregados os pés e as mãos de Cristo. Nestas quatro extremidades havia quatro pedras preciosas: a misericórdia, a obediência, a paciência e a perseverança. Na extremidade superior estava a misericórdia, naquela da direita, a obediência, na da esquerda, a paciência e na inferior, a perseverança. Os salgueiros da torrente, que permanecem sempre verdes, representam todos os santos, que, na torrente desta vida mortal e passageira permaneceram sempre verdes em boas obras.
Tomemos, pois, os frutos da árvore mais formosa, quer dizer, a pobreza e a humildade da Virgem Maria, as espadas das palmeiras, isto é, a fé, a esperança e a caridade dos apóstolos, os ramos da árvore frondosa, isto é, a misericórdia, a obediência, a paciência e a perseverança da paixão de Jesus Cristo, os salgueiros da torrente, quer dizer, as exuberantes obras de todos os santos, e exultemos diante do Senhor, nosso Deus, Jesus Cristo, gritando com as turbas e com os meninos dos hebreus: "Hosana ao Filho de Davi! Bendito aquele que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos céus!" (Mt 21,9).
Hosana interpreta-se "salvação", ou "salva, eu te peço!" Hosana, pois, isto é, a salvação pertence ao Filho de Davi, ou vem pelo Filho de Davi ou por meio do Fi-lho. Bendito, isto é, imune do pecado: portanto, és bendito de modo particular tu, ó Cristo, que vens em nome do Senhor, isto é, em honra do Pai, ou "que vens", isto é, que virás. De fato, tu que antes apareceste na condição de servo, virás no fim como glorioso Senhor. Hosana no alto dos céus, isto é, «salva no alto dos céus"; como se dissesse: tu que salvaste na terra com a redenção, salva, te pedimos, dando-nos um lugar nos céus.
Pedimos-te, pois, ó Jesus bendito: faze que também nós nos aproximemos de Jerusalém com o teu temor e com o teu amor. Leva-nos a ti da aldeia desta peregrinação terrena; repousa-te, tu, nosso rei, na nossa alma, para que junto com os meninos que escolheste deste mundo, isto é, com os apóstolos, sejamos feitos dignos de glorificar-te, de louvar-te, de bendizer-te na cidade santa, na eterna bem-aventurança. Concede-nos isso, ó tu, a quem pertence a honra e a glória pelos séculos eternos. Amém. E toda alma fiel responda: Amém!
Fonte: Sermões | Santo Antônio; tradução de Frei Ary E. Pintarelli, OFM: Vozes, 2019
Imagem: Frei Roberto Alves, OFM