SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: Os seis dias da criação e as seis virtudes da alma - Parte 2
Confira a segunda parte de um Sermão de Santo Antônio, onde o mesmo faz uma profunda ligação entre os seis dias da criação e as seis virtudes da alma. Esta reflexão foi feita no Conhecido Domingo da Septuagésima quando a liturgia apresenta em seus textos os temas da criação, elevação e queda do homem.
Sermões
20.09.2022 07:07:23 | 21 minutos de leitura

12. A segunda Jerusalém, isto é, a alma fiel, em S. Mateus 21, 33, chama-se vinha. Vejamos brevemente de que modo se deve cavar com a enxada da contrição e podar com a foice da confissão, e como se deve sustentar com as estacas da satisfação. Deus disse: Faça-se a luz, e a luz foi feita . Porque, como diz Ezequiel 1, 16, a roda estava na roda, isto é, o Novo Testamento no Velho, e a cortina arrasta a cortina , isto é, o Novo Testamento expõe o Velho, concordaremos o Novo com o Velho, expondo moralmente as seis horas do Evangelho com as obras dos seis dias. 13. No primeiro dia, portanto, disse Deus: Faça-se a luz, e a luz foi feita. Escuta a concordância da primeira hora: Assemelha-se o reino dos céus ao pai de família, que saiu muito cedo etc. Nota que são seis as virtudes da alma: o arrependimento do coração, a confissão de boca, a satisfação de obra, o amor de Deus e do próximo, o exercício da vida ativa e contemplativa, a consumação da perseverança final. Quando sobre a face do abismo, isto é, do coração90, há as trevas do pecado mortal, o homem sofre a ignorância do conhecimento divino e da própria fragilidade, e não sabe discernir entre o bem e o mal. Este é o tríduo de que se fala no Êxodo 10, 21-23: na terra do Egito, durante três dias, houve trevas que se podiam apalpar; em toda a parte onde habitavam os filhos de Israel havia luz. Os três dias são o conhecimento de Deus e de si mesmo e o discernimento do bem e do mal. Para os dois primeiros suplica S. Agostinho : Senhor, conheça-me eu a mim e a ti; do terceiro se diz no Gênesis 2, 9 que a árvore, isto é, o discernimento da ciência do bem e do mal, estava no paraíso, isto é, no entendimento do homem. O primeiro dia ilumina-nos para conhecer a dignidade da nossa alma. Daí a palavra do Eclesiástico 10, 31: Filho, guarda na mansidão a tua alma e honra-a. Mas o homem miserável, constituído em honra, não o compreendeu: comparou-se aos jumentos. O segundo ilumina-nos para conhecer a própria fraqueza. Daí o dizer de Miquéias 6, 14: A tua humilhação achar-se-á no meio de ti. No meio de nós está o ventre, vaso de imundícies, em cuja consideração a nossa soberba se humilha, a arrogância se deprime, a vanglória desaparece. O terceiro ilumina-nos para discernir entre o dia e a noite, a lepra e a não lepra, o puro e o impuro, conhecimento que nos é muito necessário. Pois o mal é vizinho do bem, sob o mesmo erro. Muitas vezes o justo paga pelo pecador. Mas, nestes três dias, as trevas são palpáveis na terra do Egito e sobre a face do abismo; porém, onde quer que há verdadeiros filhos de Israel, há luz, a respeito da qual Deus disse: Faça-se a luz. Esta luz é o arrependimento do coração, que ilumina a alma, mostrando o conhecimento de Deus, a consciência da sua própria fraqueza e o discernimento entre o homem bom e o mau. 14. Esta é a primeira manhã e a primeira hora em que saiu o pai de família, isto é, o penitente, a contratar operários para trabalhar na sua vinha, como se diz no Evangelho do presente domingo, em cujo Intróito da missa se canta: Rodearam-me, e lê-se a Epístola de S. Paulo aos Coríntios 9, 24: Não sabeis que os que correm no estádio, etc. Desta manhã diz o Profeta: De manhã, isto é, no alvorecer da graça, me porei diante de ti, direito e ereto, tal como me fizeste direito e ereto. Deus, de fato, como diz S. Agostinho, direito e ereto, fez o homem direito e ereto para que só tocasse com os pés a terra, isto é, exigisse da terra só o estrito necessário. Desta manhã se diz em S. Marcos 16, 2: E muito de manhã, no primeiro dia da semana, vêm ao túmulo, nascido já o sol. E nota que diz bem: no primeiro diz da semana, pois ninguém pode vir ao túmulo, isto é, à consideração da sua morte, a não ser que antes repouse da solicitude dos bens temporais. Na manhã da contrição, diz o Profeta, matarei, isto é, reprimirei, todos os pecadores da terra, isto é, todos os movimentos da minha carne. Quem é esta, diz da alma penitente o Esposo, que vai caminhando como a aurora quando se levanta? Assim como a aurora é o início do dia e o fim da noite, assim a contrição é o fim do pecado e o início da penitência. Daí o dizer do Apóstolo: Outrora fostes trevas; agora, porém, sois luz no Senhor; e noutro lugar: A noite passou e o dia aproximou-se.
15. Portanto, à primeira luz e ao romper da aurora sai o pai de família para tratar da vinha. Dela refere Isaías 5, 1-2: Foi adquirida uma vinha para o amado no corno filho do azeite; cercou-a duma sebe, e tirou dela as pedras, e edificou uma torre no meio, e construiu na mesma torre um lagar e plantou-a de bacelo escolhido. Uma vinha, isto é, a alma, foi adquirida para o amado, isto é, em honra do amado: no corno, isto é, na potência da Paixão; filho do azeite, isto é, da misericórdia, não pelas obras da justiça que nós fizemos, salvou a sua própria vinha, que cercou a sebe da lei escrita e da lei da graça; dela escreve Salomão nas Parábolas: O que desfaz a sebe, isto é, destrói a lei, mordê-lo-á a cobra, isto é, o diabo, que ama as sombras, ou seja, os pecadores. Por isso, diz Job 40, 06: Dorme à sombra, quer dizer, descansa na mente coberta de sombras, no esconderijo do canavial, isto é, no engano do hipócrita, e em lugares úmidos, isto é, nos luxuriosos. Segue: E tirou dela as pedras, ou seja, a dureza do pecado; edificou a torre da humildade, ou seja, a parte superior da razão, no meio dela; e nela construiu o lagar da contrição, de que se espreme o vinho das lágrimas. E, desta forma, com os exemplos e doutrina dos santos plantou-a de bacelo escolhido. Para ela o pai de família deve muito cedo assalariar operários, a saber, o amor e o temor de Deus, que bem a cultivem. 16. Igualmente desta manhã se lê no primeiro livro dos Reis 11, 11 que Saul, tendo entrado no meio do acampamento dos filhos de Ámon, na vigília da manhã, feriu Ámon, até que o dia aqueceu. Saul significa o penitente, ungido com o óleo da graça. Este deve na vigília matutina, isto é, de coração contrito, penetrar no meio do acampamento dos filhos de Ámon, que se interpreta água paterna e significa os movimentos da carne, que desde o primeiro pai, como água fluente, chegaram até nós. A estes deve Saul ferir, até que o dia aqueça, isto é, até que o calor da graça ilumine o entendimento e o aqueça depois de iluminado.
Desta manhã se lê ainda no Profeta Jonas 4, 7 que o Senhor preparou um verme ao romper da alvorada, e feriu a hera e ela secou. A hera, que por si só não pode elevar-se às alturas, mas, agarrando-se aos ramos de qualquer árvore, se dirige aos lugares mais altos, significa o rico deste mundo, que se eleva ao céu, não por si, mas pelas esmolas aos pobres, como se eles fossem os seus braços; daí a palavra do Senhor do Evangelho: Granjeai amigos com as riquezas da iniqüidade, isto é, da desigualdade, para que quando vierdes a precisar, vos recebam, etc. Esta hera, ao romper da alvorada, isto é, ao surgir da graça ou no coração contrito, com o dente dum verme, ou seja, com o remorso da consciência, é ferida e cortada, a fim de que, ao cair em terra, isto é, ao considerar-se terra, seque e se considere vil, dizendo com o Profeta: Desfaleceu o meu coração, quer dizer, a soberba do meu coração, e a minha carne, isto é, a minha sensualidade. Depois de saboreadas estas coisas sobre o primeiro dia e a primeira manhã da contrição, passemos ao segundo dia e à terceira hora da confissão. 17. No segundo dia, disse Deus: Faça-se o firmamento no meio das águas, que separe umas águas de outras águas. O firmamento é a confissão, que firmemente retém o homem e o impede de se perder nos prazeres. Por isso, reprova o Senhor a alma pecadora, privada deste firmamento, por boca de Jeremias: Até quanto te debilitarão os prazeres, filha vagabunda? E por Isaías 23, 10 : Percorre a terra como um rio, filha do mar, porque daqui por diante já não tens cintura. A alma miserável diz-se filha do mar. Ela, como da mama do diabo, suga a voluptuosidade do mundo, que sabe a doce, mas gera sempiterna amargura. Daí a afirmação de S. Tiago 1, 15: A concupiscência dá à luz o pecado; e o pecado, depois de ter sido consumado, gera a morte. A esta alma se diz: Percorre a terra como um rio; como se dissesse: Cinge-te com a cintura da confissão e aperta os teus vestidos, para que não caiam nas imundícies; e não queiras passar sobre a abundância dos bens terrenos, onde muitos perigaram, mas passa através da indigência e angústia da pobreza, pois que através do ribeiro se passa com segurança de ânimo. Mas a alma pecadora não tem cintura, não possui o firmamento da confissão; deste se escreve: Faça-se o firmamento no meio das águas, que separe umas águas de outras águas. As águas superiores são as torrentes da graça; as inferiores, as torrentes da concupiscência, que devem estar debaixo do homem. Por outras palavras: O entendimento do justo tem águas superiores, isto é, a razão, que é a força superior da alma, a qual provoca o homem ao bem; e tem águas inferiores, isto é, a sensualidade, que tende sempre à queda. O firmamento da confissão, portanto, divida as águas superiores da inferiores, a fim de que o confitente, saindo de Sodoma e subindo às montanhas, não olhe para trás, como a mulher de Lot, e se converta em estátua ou rocha de sal, que os animais, isto é, os demônios, consomem, lambendo-o com grande avidez. Saindo também do Egito com os verdadeiros israelitas, rumo à terra de promissão, não escolha para seu guia a própria vontade, e não volte às panelas das carnes e aos pepinos e às cebolas dos egípcios, isto é, aos desejos dos carnais. Faça-se, portanto, por favor, um firmamento no meio das águas, de modo que, dada a garantia ao confessor de firme propósito de não recair, mereça na própria confissão, como se fosse na terceira hora, inebriar-se com o mosto do Espírito Santo juntamente com os Apóstolos, e, como se fosse um odre tornado novo por meio da confissão, mereça encher-se de vinho novo. Se, pois, como diz o Senhor, for posto vinho novo, o vinho do Espírito Santo, no odre velho dos maus dias, não só o odre se romperá, mas também o vinho se derramará, como aconteceu ao endurecido traidor Judas, que, semelhante a odre suspenso pelo pescoço, rebentou o ventre pelo meio, e as vísceras, que tinham bebido o veneno da avareza, se espalharam em terra. E bem se chama a confissão hora terceira, na qual o verdadeiro confitente, como o pai de família, cultiva a vinha da sua alma. Em três coisas, pois, se deve confessar culpável: Porque ofendeu o Senhor, se matou a si mesmo, escandalizou o próximo, não dando a cada um a devida justiça: honra a Deus, vigilância a si mesmo, amor ao próximo. Por isso, no Intróito da missa de hoje, chora com as palavras: Rodearam-me gemidos de morte, porque ofendi a Deus; as dores do inferno rodearam-me, porque incorri em pecado mortal; e na minha tribulação, com que sou atribulado, porque escandalizei o próximo, invoquei o Senhor de coração contrito; e ele ouviu desde o seu santo templo, isto é, desde a sua humanidade, em que habita a divindade, a minha voz, a voz da minha confissão. 18. No terceiro dia disse Deus: Produza a terra erva verde, que dê semente segundo a sua espécie, cuja semente esteja nela mesma sobre a terra. Observa que no terceiro dia se nota a satisfação da penitência, que consiste em três obras: oração, jejum e escola, que se verificam nas três partes enunciadas. Diga-se, portanto: Produza a terra, etc. A erva verde significa a oração. Por isso, diz Job 39- 5-8 do penitente: Quem pôs o ónagro em liberdade e quem soltou as suas prisões? Eu dei-lhe uma casa no deserto e os seus tabernáculos na terra estéril. Ele despreza a multidão da cidade e não ouve a voz do exator. Estende a vista pelos montes onde pasta e anda buscando tudo o que está verde. O ónagro – de ônus (carga) e ager (campo) – significa o penitente que no campo da Igreja suporta o peso da penitência. A este põe o Senhor em liberdade e solta as cadeias quando, livre da servidão do diabo e das cadeias dos pecados, lhe permite se vá embora. Por isso, o Senhor diz em S. João 11, 44 aos Apóstolos: Soltai-o e deixai-o ir. Dá-lhe Deus casa na solidão do entendimento e os tabernáculos da vida ativa, nos quais milita na terra estéril do viver mundano. E assim, este penitente despreza a multidão da cidade, de que diz o Senhor por boca do Profeta: Eu sou o Senhor e não mudo e não entro na cidade; e David: Vi na cidade a iniqüidade, quanto a Deus, e a contradição, quanto ao próximo. E não ouve a voz do exator. O exator é o diabo, que ofereceu uma vez a moeda do pecado ao primeiro pai e agora não a cessa de exigir todos os dias com usura. O penitente não ouve a voz deste exator quando não obedece à sugestão. Ou então, o exator é o ventre, que diariamente exige com clamor o tributo à gula, mas o penitente de forma alguma o ouve, porque se lhe obedece, não é por prazer, mas por necessidade. Este ónagro estende a vista pelos montes onde pasta, porque posto em excelência de vida, olhando em redor, encontra os pastos da Sagrada Escritura, dizendo com o Profeta: Colocou-me num lugar de pastos. E, desta forma, na oração devota procura verdura, a fim de chegar por meio dos pastos da leitura sagrada a apanhar as verduras da oração devota, da qual se diz: Produza a terra erva verde. 19. Segue: E dê semente. Por esta significa-se o jejum. Donde a afirmação de Isaías 32, 20: Bem-aventurados vós os que semeais sobre as águas, atando a pata do boi e do asno. Semeia sobre as águas aquele que ajunta à oração e à compunção das lágrimas o jejum, e desta forma ata com as cadeias dos preceitos a pata do boi, isto é, o afeto do espírito, e do asno, isto é, do corpo. Por isso, diz o Senhor: Este gênero de demônios, a imundície do coração e a luxuria da carne, não pode expulsar-se senão com a oração e o jejum. Com a oração, de fato, limpamos o coração do pensamento impuro; com o jejum refreamos a petulância da carne. Segue o terceiro: Árvores frutíferas que dêem fruto segundo a sua espécie. Nas árvores frutíferas designa-se a esmola, que frutifica nos indigentes e por suas mãos é levada ao céu. E nota que se diz dar fruto segundo a sua espécie. A espécie humana é um segundo homem criado do lodo e vivificado pela alma. Deve, portanto, a esmola dar fruto segundo a sua espécie, porque a alma é alimentada pelo espiritual, o corpo pelo pão corporal. Daí o dito de Job 5, 24: Visitando a tua espécie, não pecarás. A tua espécie é um segundo homem, que deves visitar tanto com a esmola espiritual quanto com a corporal; e assim não pecarás contra aquele preceito: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Nota, porém, que se diz: Cuja semente esteja nela mesma. Comentário de S. Agostinho: O que ordenadamente deseja dar esmola deve começar primeiro por si mesmo. / Estas três obras tornam perfeita a satisfação da penitência, bem significada pela sexta hora, a saber, o meio-dia, por volta da qual o pai de família saiu a contratar operários para a sua vinha. O meio-dia, em que mais queima o sol do que noutra ocasião do dia, designa o fervor da satisfação. Por isso, afirma-se pelo fim do Deuteronômio 33, 23: Neftali gozará de abundância e será cheio da bênção do Senhor: possuirá o mar e o meio-dia. Neftali interpreta-se convertido ou dilatado e significa o penitente, que se converte do seu mau caminho e se dilata em boas obras. Este gozará da abundância da graça no presente estado de viador e será cheio da bênção da glória, porque, para merecer consegui-la, é preciso antes possuir o mar, isto é, a amargura do coração, e o meio-dia, isto é, o fervor da satisfação. 20. No quarto dia disse Deus: Façam-se dois luzeiros no firmamento. A quarta virtude é o amor de Deus e do próximo. O amor de Deus designa-se na claridade do sol, o do próximo na mutabilidade da lua. Acaso não te parece uma certa mutabilidade alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram? Destas duas coisas se diz pelo fim do Deuteronômio 33, 14: Com os frutos produzidos por virtude do sol e da lua encher-se-á a terra de José. Os frutos significam as obras do justo, por causa do encanto da perfeição, beleza da intenção pura, odor da boa opinião. Estes frutos são produzidos por virtude do sol e da lua, ou seja, do amor de Deus e do próximo; estas duas coisas fazem perfeito um qualquer. Este duplo amor designa-se na hora nona, por volta da qual saiu o pai de família. De fato, a perfeição do duplo amor conduz à perfeita da felicidade angélica, assim distribuída em nove ordens pelo profeta Ezequel 28, 13, onde fala a Lúcifer, sob o tipo de nove pedras: O teu vestido é todo de pedra preciosa: o sárdio, o topázio e o jaspe, o crisólito, o ônix, o berilo, a safira, o carbúnculo e a esmeralda. 21. No quinto dia fez Deus os peixes do mar e as aves sobre a terra. A quinta virtude é o exercício da vida ativa e contemplativa; nesta, o homem ativo, semelhante ao peixe, percorre as veredas do mar, isto é, do mundo, a fim de poder socorrer o próximo que padeça necessidade; e o contemplativo, semelhante à ave, elevado no ar com a pena da contemplação, contempla o Rei na sua glória, conforme lho permite a sua pequenina capacidade. O homem, diz Job 5, 7: nasce para o trabalho da vida ativa; e a ave para o vôo da vida contemplativa. E nota que assim como a ave dotada de peito largo, por tomar muito ar, é retardada pelo vento, e a que tem peito estreito e agudo voa mais velozmente e sem dificuldade, também o entendimento do contemplativo, se se dilata em muitos e vários pensamentos, é demasiado impedido no vôo da contemplação, mas se junto e unido começar a voar, fruirá do gozo da contemplação. O exercício desta dupla vida designa-se na hora undécima, por volta da qual saiu o pai de família. A hora contemplativa refere-se ao um, porque contempla um só Deus, um só gozo; a vida ativa, portanto, refere-se aos dez preceitos do Decálogo, com os quais a mesma vida ativa se completa plenamente na vida deste exílio. 22. No sexto dia disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. A sexta e última virtude da alma é a perseverança final, que é a cauda da vítima no sacrifício, a túnica talar polimita de José, sem a qual as cinco sobreditas virtudes inutilmente se possuem, e com a qual utilmente se possuem. Nela, como se fora no sexto dia, a imagem e semelhança de Deus, que nunca se deve deturpar, nunca obliterar, nunca manchar, se imprime eternamente na face da alma. Esta tarde do Evangelho, a última hora da vida humana, em que o pai de família, por meio dum dispenseiro, isto é, de seu Filho, dá um dinheiro ao que trabalhou bem na vinha, é significada pelo sábado, que se interpreta descanso. Deste escreve Isaías 66, 23: Será mês de mês, isto é, será a perfeição da glória conforme a perfeição da vida; e sábado de sábado, isto é, o descanso da eternidade dependerá do descanso do espírito, descanso que consiste na dupla estola da alma e do corpo. A alma será glorificada por três dotes e o corpo por quatro. A alma adornar-se-á da sabedoria, da amizade e da concórdia. A sabedoria de Deus aparecerá na face da alma e verá a Deus tal-qual é, e conhecerá como é conhecida; a amizade será também para com Deus; donde a frase de Isaías: O seu fogo será em Sião, isto é, na Igreja militante, e fornalha de ardentíssimo amor em Jerusalém, isto é, na Igreja triunfante; a concórdia será para com o próximo, de cuja glória a alma gozará tanto quanto gozar dela própria. Quatro serão também os dotes do corpo: a claridade, a sutileza, a agilidade e a imortalidade, dos quais se diz no livro da Sabedoria: Os justos resplandecerão, eis a claridade, e brilharão como centelhas, eis a sutileza, que correm num canavial, eis a agilidade; e o seu Senhor reinará para sempre, eis a imortalidade. De fato, Deus não é de mortos, mas de vivos. 23. Para merecer esta coroa corruptível, dotada destas sete pedras, corramos, como diz o Apóstolo na Epístola de hoje: Não sabeis que os que correm no estádio, correm, sim, todos, mas só um alcança o prêmio? Correi, pois, de tal maneira que o alcanceis. E todos aqueles que combatem na arena de tudo se abstêm; e eles para alcançar uma coroa corruptível; nós, porém, uma incorruptível. O estádio é a oitava parte da milha, e consta de 125 passos, e significa o trabalho deste exílio. Nele devemos correr na unidade da fé, com passos de amor, que são 125. Neste número designa-se toda a perfeição do amor divino. No 100, número perfeito, é designada a doutrina evangélica; no 20, os dez preceitos do Decálogo, que se devem cumprir literal e espiritualmente 182; no 5, o prazer dos cinco sentidos, prazer que se deve refrear. Quem corre em semelhante estádio recebe o prêmio, isto é, a remuneração da coroa incorruptível. Dela diz o Senhor no Apocalipse 2, 10: Dar-te-ei a coroa da vida. Irmãos caríssimos, imploremos humildemente e com lágrimas, a quem nos criou e voltou a criar, criou do nada e voltou a criar com o próprio sangue, se digne dar-nos os sete dons da eterna felicidade; e com Ele, princípio de todas as criaturas, mereçamos viver eternamente. Auxilie-nos Ele mesmo, que vive e reina por séculos de séculos. Assim seja.
Fonte: SANTO ANTÔNIO DE LISBOA. Obras Completas. Sermões Dominicais e Festivos (Vol. I)
Imagem: Francisco de Zurbarán - Sto Antonio de Padua