SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: Transfiguração de Jesus

Acompanhe um sermão de Santo Antônio a partir do do Segundo Domingo da Quaresma, onde o santo aborda o tema da Transfiguração, convidando a também a transparecer em nossas vidas a luz de Cristo.

07.03.2023 08:39:15 | 29 minutos de leitura

SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: Transfiguração de Jesus

1. "Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e levou-os a um monte muito alto" etc. (Mt 17,1).

No Êxodo, lê-se que o Senhor falou a Moisés, dizendo: "Sobe para junto de mim no monte e fica ali; eu te darei as tábuas de pedra, a lei e os mandamentos, que escrevi para que tu os ensines aos filhos de Israel" (Ex 24,12).

Moisés se interpreta "aquático" (cf. Ex 2,10) e é figura do pregador que rega as mentes dos fiéis com a água da doutrina "que brota para a vida eterna" (Jo 4,14). Ao pregador o Senhor diz: "Sobe para junto de mim no monte". O monte, por causa de sua altura, representa a sublimidade da vida santa, à qual o pregador deve subir pela escada do divino amor, abandonando o vale das coisas temporais: e ali encontrará o Senhor. De fato, na sublimidade da vida santa encontra-se o Senhor. Por isso, diz-se no Gênesis: "O Senhor providenciará sobre o monte" (Gn 22,14); isto é, na sublimidade da vida santa, o Senhor fará ver e compreender o que deve a Deus e o que deve ao próximo.

"Eu te darei duas tábuas." Nas duas tábuas é indicado o conhecimento dos dois Testamentos, o único em condições de ensinar, o único que torna sábios. Esta é a única ciência que ensina a amar a Deus, a desprezar o mundo, a submeter a carne. O pregador deve ensinar estas coisas aos filhos de Israel, porque delas depende toda a lei e os profetas (cf. Mt 22,40). Mas onde se encontra esta ciência tão preciosa: Exatamente sobre o monte. "Sobe - disse - para junto de mim no monte e fica ali", porque ali existe "a mudança feita pela direita do Altíssimo" (SI 76,11), a transfiguração do Senhor, a contemplação da verdadeira alegria. Exatamente daquele monte se diz no evangelho de hoje: "Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João" etc.

2. Observa que neste evangelho há cinco momentos aos quais se deve prestar a máxima atenção: a subida de Jesus e dos três apóstolos ao monte, a sua transfiguração, a aparição de Moisés e de Elias, a sombra produzida pela nuvem luminosa, e a declaração da voz do Pai: "Este é meu Filho muito amado".

Em honra de Deus e para a utilidade de vossas almas, veremos o significado moral destes cinco episódios, segundo aquilo que o Senhor quererá inspirar-nos.

I - A SUBIDA DE IESUS CRISTO COM OS TRÊS APÓSTOLOS AO MONTE

3. "Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João." Estes três apóstolos, companheiros íntimos de Jesus Cristo, representam as três faculdades de nossa alma, sem as quais ninguém pode subir ao monte da luz, isto é, à sublimidade da familiaridade divina. Pedro se interpreta "aquele que conhece"; Tiago, "aquele que suplanta ou extirpa"; João, "graça do Senhor"

Jesus, pois, tomou consigo Pedro etc. Também tu, que crês em Jesus e de Jesus esperas a salvação, toma contigo Pedro, quer dizer, o conhecimento, a consciência do teu pecado, que consiste em três vícios: a soberba do coração, a concupiscência da carne e o apego às coisas do mundo. Toma contigo Tiago, isto é, a destruição (supplantatio) desses três vícios, a fim de que quase sob a planta da razão, isto é, com a força da razão, possas destruir a soberba do teu espírito, mortificar a concupiscência de tua carne e rejeitar a vá falsidade das coisas do mundo. Enfim, toma também João, isto é, a graça do Senhor -, que está à porta e bate (cf. Ap 3,20) - a fim de que te ilumine e te faça conhecer o mal que fizeste e te torne perseverante no bem que começaste a fazer.

Os três apóstolos são aquelas três pessoas das quais Samuel disse a Saul: "Quando chegares ao carvalho do Tabor, encontrarás aí três homens, que vão adorar a Deus em Betel: um leva três cabritos, o segundo, três formas de pão, o terceiro, uma ânfora de vinho" (1Sm 10,3).

O carvalho do Tabor e o próprio Tabor são figura da sublimidade da vida santa, que justamente é chamada tanto carvalho como monte e também Tabor: carvalho, porque é constante e irremovível até a perseverança final, monte, porque é elevado e sublime até a contemplação de Deus; Tabor - que se interpreta "esplendor que vem" - porque difunde a luz do bom exemplo. Na sublimidade da vida santa, exigem-se estas três qualidades: que seja constante em si mesma, imersa na contemplação de Deus e luz que ilumina o próximo. "Quando, pois, chegares", isto é, estabeleceres chegar ou subir ao carvalho ou a Monte Tabor, encontrarás aí três homens que estão subindo a Deus em Betel. Estes três homens são Pedro, aquele que conhece, Tiago, aquele que suplanta ou erradica, e João, a graça de Deus. Pedro leva três cabritos, Tiago, três formas de pão, João, uma ânfora de vinho.

Pedro, isto é, aquele que se reconhece pecador, leva três cabritos. No cabrito é simbolizado o fedor do pecado; nos três cabritos, as três espécies de pecados nos quais se cai com mais frequência, isto é, a soberba do coração, a impudência da carne, o apego às coisas do mundo. Portanto, quem quiser subir ao monte da luz deve levar estes três cabritos, isto é, reconhecer-se culpável destas três espécies de pecados.

Tiago, isto é, aquele que suplanta ou erradica os vícios da carne, leva três formas de pão. O pão simboliza a bondade do espírito, que consiste na humildade do coração, na castidade do corpo e no amor à pobreza; ninguém pode ter esta bondade se antes não tiver erradicado os vícios. Portanto, leva três formas de pão - quer dizer, a tríplice bondade do espírito - somente aquele que reprime a soberba do coração, que freia a impudência da carne e que rejeita a avareza do mundo.

João, isto é, aquele que com a graça de Deus - que antecede, acompanha e coopera - conserva todas estas coisas com fidelidade e constância, leva verdadeiramente a ânfora de vinho. O vinho na ânfora representa a graça do Espírito Santo, infundida na vontade de fazer o bem.

Portanto, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João. Toma contigo também tu estes três personagens e dispõe-te a subir ao Monte Tabor.

4. Mas, acredita-me, a subida é difícil, porque o monte é altíssimo. Apesar de tudo, queres subir com grande facilidade? Arranja-te aquela escada da qual se lê e se canta no relato bíblico deste domingo: "Jacó viu em sonho uma escada posta de pé, ou seja, apoiada sobre a terra, cujo cimo tocava o céu; via também os anjos de Deus que subiam e desciam por ela, e o Senhor no alto da escada" (Gn 28,12). Presta atenção às várias palavras e constatarás sua concordância com o evangelho.

Viu, eis o conhecimento do pecado, do qual o Bem-aventurado Bernardo diz: Deus me conceda que não tenha outra visão a não ser o conhecimento dos meus pecados. Jacó, que tem o mesmo significado que "Tiago": eis a suplantação da carne; de Jacó disse Esaú: "Eis que pela segunda vez me suplantou!" (Gn 27,36). Em sonho, eis a graça do Senhor que infunde o sono da tranquilidade e da paz. Assim o Filósofo descreve o sono: «O sono é a tranquilidade das faculdades animais, com a intensificação, a consolidação daquelas naturais" (ARISTOTELES. O sono e a vigília)". De fato, quando alguém dorme o sono da graça, nele as potências da carne desistem (quic cunt) de suas obras más, e se reavivam, reforçam-se as potências do espírito. Com efeito, o Gênesis diz: "Ao pôr do sol, veio um profundo sono a Abraão e um grande terror o acometeu" (Gn 15,12).

Por "sol", entende-se aqui o prazer carnal: quando este é vencido, desce sobre nós uma sonolência, isto é, o êxtase da contemplação, e nos invade um grande horror pelos pecados passados e pelas penas do inferno. Queres ouvir o reforço das faculdades espirituais e o enfraquecimento daquelas carnais? "Eu durmo", diz a esposa do Cântico dos Cânticos, isto é, desisto do desejo das coisas temporais, "mas meu coração vela" (Ct 5,2) na contemplação daquelas celestes. Com justiça, pois é dito: "Jacó viu em sonho uma escada": por meio dela tu podes subir ao Monte Tabor.

5. Observa que a escada tem dois "braços" (montantes) e seis degraus, por meio dos quais é fácil a subida. Esta escada representa Jesus Cristo; os dois braços são a natureza divina e a natureza humana; os seis degraus são sua humildade e pobreza, a sabedoria e a misericórdia, a paciência e a obediência. Foi humilde ao assumir a nossa natureza, quando "olhou para a humildade de sua serva" (Lc 1,48). Foi pobre no seu nascimento, no qual a Virgem pobrezinha, dando à luz o próprio Filho de Deus, não teve onde colocá-lo, envolto em faixas, senão numa manjedoura de ovelhas (cf. Lc 2,7). Foi sábio na sua pregação, porque "começou a fazer e a ensinar" (At 1,1). Foi misericordioso ao acolher benignamente os pecadores: "Não vim chamar os justos, mas os pecadores" (Mt 9,13) à penitência. Foi paciente sob os flagelos, as bofetadas, as cusparadas; com efeito, disse por boca de Isaías: "Ofereci minha face como uma pedra duríssima" (Is 50,7). A pedra, se é batida, não reage nem se lamenta contra quem a bateu. Assim Cristo: "Ultrajado, não respondia com injúrias; atormentado, não ameaçava (1Pd 2,23). Depois foi "obediente até a morte e morte de cruz" (Fl 2,8). Esta escada estava apoiada na terra quando Cristo dedicava-se à pregação e fazia milagres; tocava o céu quando, como nos diz Lucas, passava as noites em oração (cf. Lc 6,12), em colóquio com o Pai.

Eis que a escada está erguida. Por que, então, não subis? Por que continuais a arrastar-vos por terra com as mãos e com os pés? Subi, porque Jacó viu os anjos que subiam e desciam pela escada. Subi, pois, ó anjos, ó prelados da Igreja, ó fiéis de Jesus Cristo! Subi, digo-vos, para contemplar quão suave é o Senhor (cf. SI 33,9); descei para ajudar e para aconselhar o próximo, porque disso o próximo tem necessidade. Por que tentais subir por outro caminho, em vez de subir pela escada? Se vós quiserdes subir por qualquer outra parte, cairá sobre vós um precipício. "ó estultos e tardos de coração", não digo "em crer" (Lc 24,25), porque vós credes, e também os demônios creem (cf. Tg 2,19); mas sois duros e de pedra no agir. Presumis poder subir por outro caminho ao Monte Tabor, para o repouso da luz, para a glória da bem-aventurança celeste, em vez de subir pela escada da humildade, da pobreza e da paixão do Senhor? Convencei-vos que não é possível! Eis a palavra do Senhor: "Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (Mt 16,24). E em Jeremias lemos: "Chamar-me-ás pai, e não cessarás de andar após mim" (Jr 3,19).

Diz Agostinho: "O médico toma a medicina amarga por primeiro, a fim de que não se recuse bebê-la o doente". E Gregório "Bebendo o cálice amargo chega-se à alegria da cura". "Para salvar a vida, deves enfrentar o ferro e o fogo" (Ovídio). Subi, pois, não temais, porque o Senhor está no alto da escada, pronto a acolher aqueles que sobem. De fato, "Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e subiu a um monte altíssimo".

II - A TRANSFIGURAÇÃO DE JESUS CRISTO

6. "E transfigurou-se diante deles" (Mt 17,2). Como cera mole, imprime a ti mesmo sobre esta figura, para poderes receber a figura de Jesus Cristo. Eis como foi: "Seu rosto ficou refulgente como o sol e suas vestes tornaram-se cândidas como a neve" (Mt 17,2). Nessa expressão devem-se observar quatro particularidades: o rosto, o sol, as vestes e a neve. Veremos qual seja seu significado moral.

Nota que na parte frontal da cabeça, que é o rosto do homem, existem três sentidos, a vista, o olfato e o gosto, ordenados e dispostos de maneira admirável. O olfato está posto entre a vista e o gosto, como se fosse uma balança. Analogamente, no rosto de nossa alma há três sentidos espirituais, dispostos em ordem perfeita pela sabedoria do sumo artífice: a visão da fé, o olfato (o cheiro) da discrição e o gosto da contemplação.

7. A respeito da visão da fé, lê-se no Êxodo que "Moisés e Aarão, Nadab e Abiú e os setenta anciãos viram o Deus de Israel; e debaixo de seus pés havia como que uma obra de pedra de safira, semelhante ao céu quando está sereno" (Ex 24,9-10).

Nesta citação são descritos todos aqueles que veem com o olho da fé, e o que devam ver, isto é, crer. Moisés se interpreta "aquático" e representa todos os religiosos que devem impregnar-se da água das lágrimas; para tal objetivo, afinal, foram tirados do rio do Egito, a fim de que nesta horrível solidão [do mundo] semeiem nas lágrimas e depois colham em júbilo na Terra Prometida. Aarão, sumo pontífice, que se interpreta "montanhês" - [Deus mandou-o encontrar-se com Moisés no monte (cf. Ex 4,27)] - representa todos os altos prelados da Igreja, que estão constituídos no monte da dignidade e da autoridade. Nadab, que se interpreta "espontâneo", representa todos os súditos, que devem obedecer espon-taneamente, de boa vontade, e não por coação. Abiú, que se interpreta "pai deles", representa todos aqueles que estão unidos em matrimônio segundo a forma da Igreja, a fim de que sejam pais de filhos. Enfim, os setenta anciãos de Israel representam todos os batizados, que no sacramento receberam o Espírito Santo, que infunde os sete dons da graça. Todos estes veem, isto é, creem, e devem ver e crer no Deus de Israel.

"E debaixo de seus pés havia como que uma obra de pedra de safira." Eis o que devem crer. As palavras "Deus de Israel" indicam a divindade, as palavras "debaixo de seus pés" indicam a humanidade de Jesus Cristo, que devemos crer verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Desses pés diz Moisés: "Os que se aproximam de seus pés receberão sua doutrina" (Dt 33,3). Por isso, diz-se que Maria [de Magdala] sentava-se aos pés do Senhor e ouvia sua palavra (cf. Ic 10,39). Debaixo dos pés do Senhor, quer dizer, depois da encarnação de Jesus Cristo, apareceu a obra do Senhor, como de pedra de safira e semelhante ao céu quando está sereno. A safira e o céu sereno têm a mesma cor.

E observa que a safira tem quatro propriedades: mostra em si mesma uma estrela, faz desaparecer o carbúnculo [do homem], é semelhante ao céu sereno e estanca o sangue. A safira representa a Santa Igreja, que teve início depois da encarnação de Cristo e durará até o fim do tempo. Ela se articula em quatro ordens, isto é, os apóstolos, os mártires, os confessores da fé e as virgens, que, com justiça, podemos comparar às propriedades da safira. A safira mostra em si mesma uma estrela: este fato é figura dos apóstolos, que foram os primeiros a mostrar a estrela matutina da fé àqueles que estavam sentados nas trevas e na sombra da morte (cf. Lc 1,79). Com o contato, a safira faz desaparecer o carbúnculo, que é uma doença mortal: e este é figura dos mártires, que com seu martírio derrotaram a doença mortal da idolatria. A safira, que tem a cor do céu, representa os confessores da fé, que, considerando esterco todas as coisas temporais, elevaram-se com a corda do amor divino à contemplação de bem-aventurança celeste, dizendo com o Apóstolo: "Nossa pátria está nos céus" (Fl 3,20). Enfim, a safira estanca o sangue, e isso representa as virgens, que por amor ao esposo celeste estancaram totalmente em si mesmas o sangue da concupiscência carnal. E esta é a obra maravilhosa de pedra de safira, que apareceu debaixo dos pés do Senhor.

Está claro, pois, o que tua alma deve ver e o que tu deves crer com o olho da fé.

8. Sobre o olfato (cheiro) da discrição, lemos no Cântico do amor (Cântico dos Cânticos): "Teu nariz é como a torre do Líbano, que olha para Damasco" (Ct 7,4). Nesta citação existem quatro palavras muito importantes: nariz, torre, Líbano e Damasco. No nariz é indicada a discrição; na torre, a humildade; no Líbano, que se interpreta "brancura", a castidade; em Damasco, que se interpreta "que bebe sangue", a perfídia do diabo.

O nariz da alma, pois, é a virtude da discrição, por meio da qual ela, como com um nariz, deve saber distinguir o perfume do fedor, o vício da virtude, e perceber também coisas colocadas longe, isto é, as tentações do diabo que estão por chegar. Com precisão, do verdadeiro justo Jó diz: "Cheira de longe a batalha, a exortação dos capitães e os gritos do exército" (Jó 39,25). Com o olfato, isto é, com a virtude da discrição, a alma fiel prevê a guerra da carne e as ordens dos capitães, isto é, as sugestões da vá razão, representadas nos capitães, e isto para não cair na fossa da iniquidade sob a aparência da santidade; ouve os gritos do exército, isto é, as tentações dos demônios, que uivam como animais ferozes: o uivo é próprio dos animais ferozes.

Este "nariz" da esposa deve ser como a torre do Líbano: a virtude da discrição consiste sobretudo na humildade do coração e na castidade do corpo. E justamente a humildade é chamada "torre de castidade" porque, como a torre defende o acampamento, assim a humildade do coração defende a castidade do corpo dos dardos da fornicação. Se assim for, o olfato da esposa, facilmente, poderá olhar contra Damasco, isto é, contra o diabo, que deseja sorver o sangue de nossas almas, desmascarando assim sua subtil perfídia.

9. Sobre o gosto da contemplação, diz o profeta: "Provai e vede quão suave é o Senhor!" (SI 33,9). Provai, isto é, espremei com a gula de vossa mente, e espremendo recordai a bem-aventurança da Jerusalém celeste, que é a glorificação das almas santas, a inefável glória das multidões angélicas, a perene doçura do Deus uno e trino; e pensai também quão grande será a glória de participar dos coros dos anjos, junto com eles louvar a Deus com voz incansável, contemplar pessoalmente o rosto de Deus, admirar o maná da divindade na urna de ouro da humanidade. Se provardes a fundo estas coisas, em verdade, em verdade constatareis quão suave é o Senhor. Bem-aventurada a alma, cujo rosto é dotado e ornado com tais sentidos!

Observa ainda que o olfato é colocado quase como a agulha da balança, entre a vista da fé e o gosto da contemplação. De fato, na fé é necessária a discrição, a fim de que não ousemos aproximar-nos para ver a sarça ardente (cf. Ex 3,3), para desamarrar a correia das sandálias (cf. Lc 3,16), isto é, querer investigar o mistério da encarnação do Senhor. Crê somente, e isto é suficiente. Não compete a ti desatar as correias. Diz Salomão: "Quem quer sondar a majestade de Deus será oprimido por sua glória" (Pr 25,27). Creiamos, pois, com firmeza e professemos nossa fé com simplicidade.

Também na contemplação é necessária a discrição, para não pretender saborear coisas celestes mais do que é conveniente (cf. Rm 12,3). De fato, diz Salomão: "Fi-lho, achaste mel?" », isto é, a doçura da contemplação? "Come só o que te basta, para que, comendo demais, não o vomites depois" (Pr 25,16). Vomita o mel aquele que, não contente com a graça que lhe é dada sem mérito, quer explorar com a razão humana a doçura da contemplação, negligenciando aquilo que se diz no Gênesis, que, no nascimento de Benjamim, Raquel morreu (cf. Gn 35,17-19).

Em Beniamim é representada a graça da contemplação, em Raquel, a humana razão. No nascimento de Benjamim, Raquel morre, porque quando a mente, pretendendo elevar-se acima de suas forças, entrevê algo da luz da divindade, toda a razão humana se extingue. A morte de Raquel representa a extinção da razão. Por isso disse alguém: "Ninguém com a razão humana pode chegar até onde Paulo foi arrebatado" (Ricardo de São Vítor).

Portanto, o olfato da discrição seja como uma balança posta entre a visão da fé e o gosto da contemplação, para que o rosto da nossa alma resplandeça como o sol.

10. Observa ainda que no sol existem três prerrogativas: o esplendor, a brancura c o Calor: E vê como estas três propriedades do sol concordam perficitamente com os três acima mencionados sentidos da alma. O esplendor do sol concorda com a visão da fé, que, com a clareza de sua luz, vê e crê nas coisas invisíveis. A brancura, isto c, a nitidez e a pureza, ajusta-se à discrição do olfato; e, exatamente, porque esfregamos o nariz e voltamo-nos para o outro lado diante de alguma coisa malcheirosa, assim pela virtude da discrição devemos afastar-nos da imundície do pecado. E também o calor do sol convém ao gosto da contemplação, porque nela existe verdadeiramente o calor do amor. De fato, diz o Bem-aventurado Bernardo: "É absolutamente impossível que o sumo Bem possa ser contemplado sem ser amado": afinal, Deus é o próprio amor.

Portanto, caríssimos, prestai atenção e vede quanto é útil, quanto é salutar, tomar consigo estes três companheiros e subir ao monte da luz, porque ali existe verdadeiramente a transfiguração da aparência deste mundo, que passa (cf. 1Cor 7,31), para a figura de Deus, que permanece nos séculos dos séculos, e da qual se diz: "Seu rosto refulgiu como o sol". Resplandeça como o sol também o rosto de nossa alma, para que o que vemos com a fé brilhe nas obras; e o bem que compreendemos interiormente se traduza exteriormente no testemunho das obras pela virtude da discrição; e aquilo que provamos na contemplação de Deus se acenda de calor no amor ao próximo. Só assim o nosso rosto resplandecerá como o sol.

11. «Suas vestes tornaram-se brancas como a neve" (Mt 17,2), "como nenhum lavandeiro sobre a terra conseguiria branqueá-las" (Mc 9,2).

As vestes de nossa alma são os membros deste nosso corpo: elas devem ser cândidas. Diz Salomão: "Os teus vestidos sejam brancos em todo o tempo!" (Ecl 9,8). De que candor? "Como a neve", diz o evangelho. O Senhor, por boca de Isaías, promete aos pecadores que se convertem: "Se os vossos pecados forem como o escarlate, eles se tornarão brancos como a neve" (Is 1,18).

Aqui, observa duas coisas: o escarlate e a neve. O escarlate é um tecido que tem a cor do fogo e do sangue. A neve é fria e branca. No fogo está representado o ardor do pecado, no sangue sua imundície; na frieza da neve está simbolizada a graça do Espírito Santo, na brancura, a pureza da mente. Diz, pois, o Senhor: "Se os vossos pecados forem como o escarlate" etc. É como se dissesse: Se retornardes a mim, eu infundirei em vós a graça do Espírito Santo, que extinguirá o ardor do pecado e lavará sua imundície. Ele mesmo diz ainda por boca de Ezequiel: "Derramarei sobre vós uma água pura, sereis purificados de todas as vossas imundícies» (Ez 36,25). Por isso, as vestes, quer dizer, os membros do nosso corpo, sejam brancas como a neve, para que a frieza da neve, isto é, a compunção da mente, extinga o ardor do pecado, e a pureza de uma vida santa lave toda imundície.

As vestes representam também as virtudes de nossa alma, que, por elas revestida, aparece gloriosa diante do Senhor. Destas vestes, no relato bíblico deste domingo, diz-se que Rebeca vestiu Jacó com as vestes muito belas que tinha consigo (cf. Gn 27,15). Rebeca, isto é, a sabedoria de Deus Pai, revestiu Jacó, quer dizer, o justo, de virtudes, vestes muito belas porque tecidas com a mão e a arte de sua sabedoria: vestes que tinha consigo, colocadas no tesouro de sua glória; e as tem verdadeiramente, porque é Senhor e dono de tudo e as dá a quem quer, quando quer e como quer. Estas vestes são consideradas cândidas pelo efeito que produzem, porque tornam o homem cândido, não digo só como a neve, mas muito mais do que ela. E tais vestes, nenhum lavandeiro, isto é, nenhum pregador sobre a terra, pode torná-las tão brancas com a lavagem de sua pregação.

II - A APARIÇÃO DE MOISÉS E DE ELIAS

12. "E apareceram Moisés e Elias, que falavam com ele" (Mt 17,3).

Ao justo assim transfigurado, assim iluminado, assim vestido, aparecem Moisés e Elias. Em Moisés, que era o mais manso de todos os homens que habitavam sobre a terra (cf. Nm 12,3), cujos olhos não se haviam embaçado, nem os dentes se abalado (cf. Dt 34,7), está simbolizada a mansidão da misericórdia e da paciência.

"Mansueto" é como dizer "habituado à mão" (manui assuetus). Este é como um filho, como um animal domesticado, habituado à mão (à ação) da graça divina: seu olho, isto é, a razão não se anuvia com a fuligem do ódio, nem se ofusca com a nuvem do rancor; seus dentes não se movem contra alguém com a murmuração, nem mordem com a detração.

Em Elias, do qual, no Terceiro livro dos Reis, se diz que matou os profetas de Baal às margens da torrente de Cison (cf. 1Rs 18,40), é simbolizado o zelo pela justiça. "Baal" interpreta-se "que está no alto", o "devorador" e "Cison" "a sua dureza". Por isso, aquele que verdadeiramente arde de zelo pela justiça, mata com a espada da pregação, da ameaça e da excomunhão os profetas e os servos da soberba, que sempre tendem para o alto; mata os servos da gula e da luxúria, que devoram tudo: mata-os para que morram ao vício e vivam para Deus (cf. Gl 2,19). E realiza esta obra na torrente de Cison, isto é, pela excessiva dureza de seu coração, pela qual acumulam sobre si a cólera para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus (cf. Rm 2,5).

E a propósito diz o Senhor por boca de Ezequiel: "É a estes filhos de face dura e coração obstinado que eu te envio" (Ez 2,4); "pois toda a casa de Israel tem a fronte dura e o coração obstinado" (Ez 3,7). Tem a fronte dura aquele que, quando é censurado, não só despreza a correção, mas nem enrubesce por seu pecado. A este diz no rosto Jeremias: "O descaramento de uma meretriz apoderou-se de ti e não quiseste ter vergonha" (Jr 3,3).

Moisés e Elias, isto é, a mansidão da misericórdia e o zelo pela justiça, devem aparecer junto com o justo, já transfigurado sobre o monte da santa vida, a fim de que, como o samaritano, estejam em condições de derramar nas chagas do ferido o vinho e o óleo, para que o vigor do vinho supra a delicadeza do óleo, e a delicadeza do óleo atenue a força do vinho.

Do anjo que apareceu na ressurreição de Cristo diz-se em Mateus que seu aspec-.. 20amo O relâmpago e suas vestes como a neve (cf. Me 28,3). No relâmpago é indicada a severidade do juízo, no candor da neve, a graça da misericórdia. O anjo, isto é, o prelado, deve ter o aspecto do relâmpago, para que as mulheres, isto é, as mentes efeminadas fiquem aterrorizadas à vista de sua santidade. Como fez Ester, da qual se diz: "Quando Assuero levantou o rosto e mostrou em seus olhos cintilantes o furor de seu peito, a rainha desmaiou e, trocando-se a sua cor em palidez, deixou cair a cabeça vacilante sobre a criada que a acompanhava" (Est 15,10). Mas o prelado, como fez. Assuero, deve apresentar o cetro de ouro da benevolência (cf. Est 15,15), e vestir as vestes da neve, a fim de que a piedosa benevolência da mãe console aqueles que a severidade paterna censurou. Por isso se diz: Mesmo usando o chicote do pai, tenha também os seios da mãe.

O prelado deve ser como o pelicano, que - como se narra - mata seus filhotes, mas depois extrai sangue do próprio corpo e o derrama sobre eles e assim os chama de volta à vida. Assim deve fazer o prelado: seus filhos, seus súditos, que estigmatizou com o flagelo da disciplina e matou com a espada da áspera invectiva, deve depois com seu sangue, isto é, com a compunção da mente e a efusão das lágrimas - que Agostinho define "sangue da alma" - chamá-los de volta à penitência, na qual precisamente está a vida da alma.

IV - A DECLARAÇÃO DA VOZ DO PAI: ESTE É O MEU FILHO AMADO

13. E se em ti acontecerem primeiramente estes três eventos, isto é, a subida sobre o monte, a transfiguração e a aparição de Moisés e Elias, o quarto seguirá necessariamente, como continua o evangelho: "E eis que uma nuvem luminosa os envolveu" (Mt 17,5). Expressão semelhante a encontramos no fim do Êxodo, onde se diz: "Depois que todas estas coisas aconteceram, uma nuvem cobriu a tenda do testemunho, e a glória do Senhor a encheu" (Ex 40,31-32).

Recorda que na tenda do testemunho havia quatro objetos: o candelabro de sete luzes, a mesa da proposição, a arca do testamento e o altar de ouro (cf. 25,31-37). A tenda do testemunho representa o justo: tenda, porque "a vida do homem sobre a terra é um combate" (Jó 7,1): de fato, é da tenda que os soldados armados costumam sair para enfrentar os inimigos, quando são por eles atacados; assim faz também o justo quando inicia o combate e ele próprio é atacado; por isso se diz: "O inimigo, que combate valorosamente, faz que também tu combatas valorosamente" (Ovídio); tenda do testemunho, que tem não só daqueles que estão fora (cf. ITm 3,7) e que, por vezes, não corresponde à verdade, mas de si mesmo, porque sua glória é o testemunho de sua consciência (cf. 2Cor 1,12), e não da língua de outro.

Nessa tenda do testemunho, o candelabro de ouro, batido a mão, com sete luzes, representa a compunção do coração de ouro do justo, que é batido por múltiplos suspiros como por muitas marteladas. As sete luzes desse candelabro são os três cabritos, as três formas de pão e a ânfora de vinho, trazidos pelos três mencionados companheiros do justo. E na tenda do justo existe também a mesa da proposição, na qual é representada a perfeição da vida santa, sobre a qual devem ser postos os pães da proposição, isto é, o alimento da pregação, que a todos deve ser oferecido. De fato, diz o Apóstolo: "Eu sou devedor aos gregos e aos bárbaros" (Rm 1,14).

E ali, na tenda, existe ainda a arca da aliança, que contém o maná e a vara de Aarão. Na arca, isto é, na mente do justo, deve estar o maná da mansidão, para ser como Moisés, e a vara da correção, para ser como Elias. E, enfim, existe o altar de ouro, símbolo do firme propósito da perseverança final. Neste altar é oferecido diariamente o incenso da devota compunção e dele saem os aromas da perfumada oração.

14. Justamente, pois, se diz: "Depois que todas estas coisas aconteceram, uma nuvem cobriu a tenda do testemunho". Esta tenda, na qual aconteceu tudo aquilo que se refere à perfeição, é coberta pela nuvem e está cheia da glória do Senhor, como se diz no evangelho de hoje: "E uma nuvem luminosa os envolveu". De fato, a graça do Senhor restaura o justo transfigurado sobre o monte da luz, isto é, da santa vida: repara-o dos ardores da prosperidade deste mundo, da chuva da concupiscência carnal, da tempestade da perseguição diabólica; e assim merece sentir o sopro de uma branda viração (cf. 1Rs 19,12), a ternura de Deus Pai que diz: "Este é meu Filho muito amado, ouvi-o!" (Mt 17,5).

É verdadeiramente digno de ser chamado Filho de Deus aquele que tomou consigo os três mencionados companheiros, que subiu ao monte, que transfigurou a si mesmo da figura deste mundo para a figura de Deus, que teve como companheiros Moisés e Elias e mereceu ser envolvido pela nuvem luminosa.

Pedimos-te, pois, Senhor Jesus, que do vale da miséria tu nos faças subir ao monte da vida santa, a fim de que marcados pelo sinal de tua posse e fundados na mansidão da misericórdia e no zelo da justiça, mereçamos no dia do juízo ser envolvidos pela nuvem luminosa e ouvir a voz da alegria, da júbilo e da exultação: "Vinde, benditos do meu Pai», que vos abençoou sobre o Monte Tabor, "recebei o reino que foi preparado para vós desde a origem do mundo" (Mt 25,34).

A este reino digne-se conduzir-nos aquele ao qual pertence a honra e a glória, o louvor e o domínio, a majestade e a eternidade nos séculos dos séculos. E todo o espírito responda: Amém!

Fonte: Sermões | Santo Antônio; tradução de Frei Ary E. Pintarelli, OFM: Vozes, 2019
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