SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO: As Bodas de Caná
Acompanhe o sermão de Santo Antônio do primeiro domingo após a Epifania do Senhor, onde com uma riqueza de detalhes, o santo fala sobre o primeiro milagres de Jesus realizado nas Bodas de Caná a partir de temas como as seis palavras de Nossa Senhora, o simbolismos das seis talhas etc.
Sermões
17.01.2023 | 25 minutos de leitura

EXÓRDIO - SERMÃO AOS PREGADORES
1. Naquele tempo, "Celebravam-se umas bodas em Caná da Galileia" (Jo 2,1).
Lê-se no Eclesiástico: "Uma pequena pedra de rubi em engaste de ouro é um concerto de músicos num banquete alegrado pelo vinho" (Eclo 32,7). Vejamos o significado destas cinco coisas: a pequena pedra, o rubi, o ouro, a música e o banquete.
A pequena pedra (latim: gemmula) e o rubi (latim: carbunculus) são (sempre em latim) dois diminutivos, nos quais é simbolizada uma dupla humildade; na pequena pedra é representada a limpidez da (própria) reputação, e no rubi, que é cor de fogo, é simbolizada a caridade. São essas as duas virtudes que ornam o ouro, isto é, a sabedoria do pregador; se ele for dotado dessas duas virtudes, sua pregação será como um "concerto de músicos". Quando a sabedoria exterior se ajusta com a delicadeza da consciência, e a eloquência é coerente com a conduta de vida, então tem-se O concerto musical. Quando a língua não causa remorsos à vida, então temos uma agradável sinfonia.
Com razão, a pregação é chamada música. Dizem que a natureza da música é tal que se a ouve alguém que é triste, torna-se ainda mais triste, mas se a ouve alguém que É alegre, torna-o ainda mais alegre. Assim é também a pregação: quando declara que o rico, vestido de púrpura, está sepultado no inferno (cf. Lc 16,19.22); quando afirma que, como para o camelo é impossível passar pelo buraco de uma agulha, assim é impossível para o rico entrar no Reino dos Céus (cf. Mt 19,24; Mc 10,25);quando ensina que toda a pompa e glória terrena serão um nada, então aqueles pérfidos avarentos e usurários, que estão sempre na tristeza porque acumulam com Trabalho, guardam com medo e perdem com grande desprazer, tornar-se-ão ainda mais tristes. "Um discurso inoportuno é desagradável como a música no luto" (Eclo 22,6); "Como o vinagre lançado numa chaga viva, assim são os cantos alegres para um coração entristecido" (Pr 25,20). A palavra que morde o vício molesta o ouvido dos maus; ao contrário, torna ainda mais alegres os justos, que vivem no gozo do espírito e na alegria de uma consciência tranquila. Diz-se nas parábolas: "A alma tranquila é como um banquete contínuo" (Pr 15,15), e o Eclesiástico acrescenta: «como um banquete alegrado pelo vinho"
O banquete alegrado pelo vinho e a festa das bodas feita em Caná da Galileia são a mesma coisa, das quais se diz no evangelho de hoje: "celebravam-se umas bodas em Caná da Galileia"
2. No introito da missa de hoje canta-se: "Toda a terra te adore, ó Deus" (SI 65,1-2). Lê-se um trecho da epístola aos romanos: "Temos dons diferentes" (Rm 12,6). Deste trecho tomaremos em consideração somente seis palavras, que compararemos, quanto for possível, às seis talhas de que fala o trecho evangélico.
AS BODAS CELEBRADAS EM CANÁ DA GALILEIA
3. "Celebravam-se umas bodas." Consideremos o que significam moralmente as bodas, Caná da Galileia, a Mãe de Jesus, os discípulos de Jesus, o vinho que faltou, as seis talhas, a água mudada em vinho e o arquitriclino, isto é, o mestre-sala.
Já se falou amplamente das núpcias no comentário ao evangelho: "O Reino dos Céus é semelhante a um rei que preparou um banquete de núpcias para seu filho" (Mt 22,2), no sermão do XX domingo depois de Pentecostes, parte primeira. Por isso, aqui trataremos brevemente da união do esposo e da esposa, isto é, do Espírito Santo e da alma do penitente.
Caná interpreta-se "zelo", Galileia "emigração". No zelo, quer dizer, no amor da emigração (da mudança), acontecem as núpcias entre o Espírito Santo e a alma do penitente. E com isso concorda aquilo que lemos no Livro de Rute, que, da região de Moab, emigrou para Belém; a seguir, Booz a tomou por esposa (cf. Rt 1,6; 4,13).
Rute interpreta-se "que vê", "que se apressa", ou também "que desfalece". Ela representa a alma do penitente, que considera seus pecados com a contrição do cora-ção, apressa-se a lavá-los na fonte da confissão e desiste de sua primeira malícia com a prática das obras de reparação e de penitência. Diz o salmo: "Desfaleceram a minha carne e o meu coração" (SI 72,26), isto é, a carnalidade e a soberba do meu coração, e assim, da região de Moab, isto é, da escravidão do pecado, emigra com o zelo do amor para Belém, que significa "casa do pão". O amor de Deus é para a alma a casa do pão, na qual é protegida e saciada, e então, como diz o Bem-aventurado Bernardo, pelo caminho do amor penetra, irrompe o Espírito Santo.
O Espírito Santo é representado em Booz, nome que se interpreta "nele há poder", do qual diz Lucas: "Permanecei na cidade até que scjais revestidos do poder do alto" (Lc24,49). A alma que o Espírito Santo toma como sua esposa, ele a reveste do poder do alto. Diz Isaías: "Do alto ele dá força ao cansado, e aos fracos multiplica o vigor e o poder» (Is 40,29). Dá a força de ressurgir, dá o poder para que não sucumbam na tentação, dá o vigor para que perseverem até o fim. Na união entre o Espírito Santo e a alma celebram-se as núpcias: é preparado o tálamo da consciência, disposto em ordem o leito nupcial dos bons pensamentos, com mão hábil e delicada promove-se o acordo dos cinco sentidos, e assim, tudo ao redor exulta e se rejubila na lembrança da infinita doçura de Deus (cf. SI 144,7) e realmente experimenta-se a bondade do Senhor.
Este é o epitalâmio (o canto nupcial) que se canta hoje no introito da missa: Toda a terra te adore, ó Deus, e ressoe o saltério; cante um salmo ao teu nome, ó Altíssimo! (cf. SI 65,4). Toda a terra compreende o Oriente, o Meridião, o Ocidente e o Setentrião. O Oriente representa os incipientes; o Meridião representa os proficientes, que são ardentes como o sol ao meio-dia; o Ocidente representa os perfeitos, que estão totalmente mortos para o mundo; o Setentrião, porém, representa os bravos esposos e os bons cristãos, que, ainda de posse das substâncias deste mundo, suportam pacientemente os numerosos sofrimentos das tribulações e da dor. Toda essa terra adore o Senhor com a contrição do coração, ressoe o saltério da alegre confissão, cante o salmo da obra penitencial, nas núpcias que se celebram em Caná da Galileia.
4. "Encontrava-se lá a Mãe de Jesus. Foi também convidado Jesus com seus discípulos" (Jo 2,1-2). O ditosas bodas, honradas com tais e tão grandes privilégios, gloriosas por tantos favores! Em Maria, que foi virgem e mãe, é personificada a castidade e a fecundidade; em Jesus, que foi humilde e que disse: "Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração" (Mt 11,29); que foi pobre - "As raposas têm suas tocas e as aves O seu ninho, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça" (Mt 8,20), é personificada a humildade e a pobreza; nos seus discípulos é representada a obediência e a paciência. Eis a honra e o ornamento das bodas, eis seus privilégios e sua dignidade.
O Espírito Santo, esposo da alma, enquanto a une a si mesmo, torna-a casta e fecunda: casta pela pureza da mente, fecunda pela prole das boas obras. Diz-se no Cântico dos Cânticos: «Todas (as ovelhas ] têm dois cordeirinhos gêmeos", isto é, são ricas de obras da dupla caridade, ou da vida ativa e da contemplação, "e nenhuma delas é estéril" (Ct 4,2). Ao contrário, diz-se: "Maldita a estéril em Israel" (cf. Ex 23,26; DE 7,14). E também Jeremias: "O Senhor pisou, como em um lagar, a Virgem", isto é, a estéril, "filha de Sião" (Lm 1,15). Por isso, para fugir dessa sentença de maldição, a alma deve ser casta e fecunda, para poder dizer de si: "Eu sou a mãe do belo amor", eis a fecundidade, "do temor, da ciência e da santa esperança" (Eco 24,24), eis a castidade.
Igualmente, o Espírito Santo torna a alma humilde e pobre. Por isso, por boca de Isaías diz: "Para quem olharei cu, senão para o humilde, ou seja, para o pobre e o confito de coração?' (Is 66,2). Com efeito, no Rio Jordão, sobre Jesus desceu o Espírito em forma de pomba (cf. Mt 3,16), volátil manso e que tem o gemido como canto.
É muito difícil praticar a humildade em meio às riquezas, e raramente, ou nunca, a pureza em meio aos prazeres e às diversões. Se encontrares um rico humilde ou alguém alegre que viva castamente, considera-os dois astros do firmamento; mas temo que aqueles que têm essa aparência sejam antes pintados com a cor da hipocrisia.
Quem quiser ser verdadeiramente humilde, liberte-se das riquezas, pois, ao seu contato, a humildade é contaminada e nasce a soberba. Por isso, o Senhor lamenta-se por boca de Oscias: "Eu os instruí e dei vigor aos seus braços, mas eles meditaram o mal contra mim. Quiseram de novo sacudir o jugo; tornaram-se como um arco falso" (Os 7,15-16). O Senhor os instrui como filhos com dons gratuitos e reforça seus braços, isto é, sustenta sua energia e seu vigor, com dons naturais e temporais, a fim de que defendam Israel como um baluarte e resistam fortemente na batalha (cf. Ez 13,5).
Mas porque da abundância procede a iniquidade, "voltaram a ser filhos de Belial", isto é, sem jugo (cf. Jz 19,22), quer dizer, cheios de soberba. "Abandonaram o Senhor [diz Isaías], blasfemaram contra o Santo de Israel, voltaram para trás" (Is 1,4) e assim tornaram-se como um arco falso. Enquanto deveriam lançar flechas de vida santa e de sá doutrina e ferir o adversário, lançam flechas de vida viciada e de blasfêmia contra o Senhor.
E mais ainda, o Espírito Santo torna a alma obediente e paciente. Lemos no Livro da Sabedoria que o Espírito Santo é benigno, humano, estável (cf. Sb 7,22-23). Quem é obediente e paciente tem estas três qualidades: é benigno, isto é, bem inflamado (latim: bene ignitus) em obedecer ao superior; é humano em suportar e sofrer junto com o próximo; é estável, isto é, constante nos seus propósitos. Jamais serás verdadeiramente obediente se não fores paciente. Com efeito é viva (carente) a obediência que não é reforçada e sustentada pela paciência.
5. "E faltando o vinho" (Jo 2,3). "O seu vinho é fel de dragões" (Dt 32,33): são os prazeres do mundo e da carne. Sobre isso, diz Salomão nas parábolas: "Não olhes para o vinho quando começa a avermelhar, quando sua cor brilhar no copo de vidro; ele entra suavemente, mas no fim morde como uma serpente, e espalha o veneno como uma víbora" (Pr 23,31-32).
Observa que o vidro é um material de pouco valor, um material frágil, mas belo e resplendente. O vidro representa o corpo do homem, que, enquanto matéria, é de pouco valor, porque originário de fétida secreção; é frágil na sua substância, porque "como uma flor germina e é cortada" (Jó 14,2), "e seus anos são considerados como teia de aranha" (SI 89,9). E Isaías: "Teceram teias de aranha que não lhes servirão de vestidos" (Is 59,5-6). É também admirado pelo esplendor de sua beleza física, mas dela se diz: "Falaz é a graça e vá a beleza" (Pr 31,30).
Por isso. não olhes para este vidro quando nele se avermelha o vinho, isto é, a alegria do mundo; quando te sorri a prosperidade do mundo e o prazer da carne, não te alegres nele: de fato, insinua-se inadvertidamente, mas no fim morde como uma serpente. Isso é o que diz também o Senhor: "Ai de vós, que agora rides, porque gemereis e chorareis" (Lc 6,25). A alegria do mundo é o viveiro do eterno pranto.
«E como uma víbora injetar-te-á o seu veneno." Aqui vinho, lá veneno. E lá pelo fim desse trecho evangélico lemos: "Todo o homem", que tem sabor de húmus (terra), "serve primeiro o vinho bom", o prazer do mundo, "e quando já tiverem bebido bem, então lhes apresenta o inferior" (Jo 2,10), isto é, beberá no inferno o veneno de morte que a víbora, isto é, o diabo, dará de beber às almas dos condenados. Mas ai, quão "amarga será a bebida para os que a beberem" (Is 24,9), aqueles que antes embriagaram-se com o cálice de ouro da grande meretriz, com a qual fornicaram os reis da terra (cf. Ap 17,1-4). Por isso, suplico-nos, oxalá que, nas núpcias da esposa e do esposo, venha a faltar o vinho da alegria do mundo. Quando vier a faltar, verificar-se-á aquilo que diz o evangelho: "A Mãe de Jesus disse ao Filho: Não têm mais vinho" (Jo 2,3).
Observa, porém, que Maria, como se deduz dos evangelhos de Lucas e de João, falou só seis vezes, disse somente seis palavras. A primeira, "Como acontecerá isto!" (Lc 1,34); a segunda, "Eis a serva do Senhor" (Lc 1,38); a terceira, "A minha alma glorifica o Senhor" (Lc 1,46); a quarta, "Filho, por que fizeste isso conosco?" (Lc 2,48); a quinta, "Não têm mais vinho" (Jo 2,3); a sexta, "Fazei tudo o que ele vos disser" (Jo 2,5). Estas seis expressões são como que os seis degraus de marfim do trono de Salomão, as seis pétalas do lírio, os seis braços do candelabro. Na primeira frase é indicado o firme propósito de manter inviolada a sua virgindade; na segunda, o seu sublime exemplo de obediência e de humildade; na terceira, sua exultação pelos privilégios que lhe foram concedidos; na quarta, sua solicitude pelo Filho; na quinta, sua participação nas necessidades dos outros; na sexta, sua certeza no poder do Filho.
6. "Mulher, que nos importa isso a mim e a ti? Ainda não chegou a minha hora" (Jo 2,4). Deus, Filho de Deus, recebeu da Bem-aventurada Virgem a natureza humana. Na unidade da pessoa, o Pai pôs a divindade, a mãe, a humanidade; o Pai, a majestade, a Mãe, a fraqueza. Da divindade teve o poder de mudar a água em vinho, de devolver a vista aos cegos, de ressuscitar os mortos; da fraqueza de sua humanidade teve, porém, a possibilidade de ter fome, de ter sede, de ser amarrado, coberto de escarros e crucificado.
Diz, portanto: "Mulher, que nos importa isso a mim e a ti?» Repare nas duas palavras: mihi e tibi. No mihi, a mim, é indicada a divindade; no tibi, a ti, é indicada a humanidade. Como se tivesse dito à sua Mãe: Tu pedes que agora seja operado um milagre, o que a mim é possível, da parte da divindade; a ti, porém, isto é, à humanidade, que recebi de ti, devo a capacidade de sofrer a paixão.
E assim acrescenta: "Ainda não chegou a minha hora", isto é, a hora da paixão, na qual serei como que esmagado no lagar, e minhas vestes serão como aquelas dos que pisam na tina (cf. 15 63,2-3). Ainda não chegou a hora em que Judas levantará o seu calcanhar sobre o cacho de uva, do qual brotará o vinho que inebria "os corações daqueles que procuram o Senhor" (S1 104,3). Ainda não chegou a hora em que a iva da humanidade que recebi de ti será esmagada com a prensa da cruz, para que dela escorra o vinho que alegra o coração do homem (cf. SI 103,15). Quando chegar aquela hora, que nos importará isso a mim e a ti, mulher?
7. "Ora, estavam ali seis talhas (jarras) de pedra, preparadas para a purificação dos judeus, que levavam cada uma duas ou três metretas" (Jo 2,6). Em Caná da Galileia, isto é, na alma que no zelo do amor passou dos vícios para as virtudes, há seis talhas, quer dizer a contrição, a confissão, a oração, o jejum, a esmola e o perdão das ofensas, dado de todo o coração. São estas que purificam os judeus, isto é, os penitentes, de todos os seus pecados.
A contrição purifica; diz o Senhor por boca de Ezequiel: "Derramarei sobre vós uma água pura, e vós sereis purificados de todas as vossas imundícies" (Ez 36,25); e Jeremias: "Lava, Jerusalém, o teu coração de toda a maldade, para que sejas salva.
Até quando permanecerão em ti pensamentos pecaminosos?" (Jr 4,14). A contrição lava a maldade do coração e o purifica dos pensamentos iníquos; e diz o Levítico: "Lavarão com água os intestinos e as patas" das vítimas (Lv 1,13). Nos intestinos são indicados os pensamentos impuros; nas patas, os desejos carnais: tudo se lava na água da contrição. "Tu me lavarás, e ficarei mais branco do que a neve" (SI 50,9).
Também a confissão purifica, e por isso se diz: Tudo se lava na confissão (Bernardo). Diz Jeremias: "Derrama o teu coração como água diante do Senhor" (Lm 2,19). Diz "como água", não como vinho, ou leite, ou mel. Quando derramas vinho, no vaso permanece o cheiro; quando derramas o leite, permanece a cor; quando derramas o mel, permanece o sabor; mas quando derramas a água, nenhum traço disso permanece no vaso.
No cheiro do vinho é simbolizada a fantasia do pecado, na cor do leite a admiração da beleza vá e no sabor do mel a recordação do pecado confessado, unida à complacência da mente. São essas as sobras malditas de que fala o salmo: "Fartaramse de filhos", isto é, de obras más, ou de carne de porco, quer dizer, da imundície do pecado, "e deixaram suas sobras para seus netos» (SI 16,14), isto é, para os impulsos instintivos. Tu, porém, quando derramas o teu coração na confissão, derrama-o como água, a fim de que todas as imundícies e qualquer traço delas seja totalmente apagado, e assim serás purificado do pecado.
E também a oração purifica. Diz o Senhor: "Virão chorando e eu os reconduzirei à oração e os guiarei para as torrentes de água" (Jr 31,9). E o Eclesiástico continua: "Não desprezará a oração do órfão" isto é, do humilde penitente que diz: "Meu pai e minha mãe", isto é, o mundo e a concupiscência da carne, "abandonaram-me; o Senhor, porém, tomou conta de mim" (SI 26,10); "não desprezará a viúva", isto é, a alma do penitente, já separada do diabo e do vício, "que lhe fala com os seus gemidos. Não correm as lágrimas da viúva por suas faces e não clama ela contra aquele que lhas fez derramar? Porque, das faces, elas sobem até o céu, e o Senhor, que a Ouve, não gostará de vê-la chorar. Aquele que adora a Deus com alegria, será por ele amparado, e a sua prece chegará até as nuvens. A oração do que se humilha penetrará as nuvens" (Eclo 35,17-21).
Igualmente o jejum purifica. Diz o Profeta Joel: "Convertei-vos a mim de todo o vosso coração com jejuns, com lágrimas e com gemidos" J1 2,12); e Mateus: «Tu, porém, quando jejuas, perfuma a cabeça e lava o teu rosto" (Mt 6,17). Após o jejum de quarenta dias, Moisés mereceu receber do Senhor a lei perfeita (cf. Ex 34,28; De 9,9), lei que converte e purifica a alma (cf. SI 18,8); e Elias mereceu ouvir o sopro de uma leve brisa (cf. 1Rs 19,12). A saliva do homem em jejum mata as serpentes. Grande poder do jejum, que cura a peste da alma e desmascara as ciladas do eterno inimigo.
E também a esmola purifica: "Dai esmolas... e eis que todas as coisas serão puras para vós" (Lc 11,41). Assim como a água extingue o fogo, a esmola apaga o pecado (cf. Eclo 3,33). E diz ainda o Eclesiástico: "A esmola do homem é como um saco pequeno que ele leva consigo, e conservará a graça do homem como a menina dos olhos" (Eclo 17,18). A esmola é representada no saco, porque aquilo que nele se põe, será depois encontrado na vida eterna. É o que diz também o Eclesiastes: "Lança o teu pão sobre as águas que passam", isto é, dá-o aos pobres que passam de lugar em lugar e de porta em porta, "e depois de muito tempo", isto é, no dia do juízo, "encontrá-lo-ás" (Ecl 11,1), isto é, terás sua recompensa: "Tive fome e me destes de comer" (Mt 25,35). És peregrino, ó homem! Leva esse saco pelo caminho de tua peregrinação, para que, quando à tarde chegares à tua hospedagem, possas encontrar ali o pão com o qual te alimentarás.
8. "A esmola conserva também a graça como a pupila dos olhos." Para conservar a agudez da vista existe uma película muito tênue, que está sobre a pupila; e para a proteção dos olhos foram criadas as pálpebras; e todo animal fecha os olhos para não deixar que corpos estranhos entrem neles, e isso não voluntariamente, mas por um estímulo natural; e o homem, tendo essa película muito mais sutil do que todos os outros animais, fecha os olhos com grande frequência. A ave, porém, quando fecha os olhos, fecha-os somente com a pálpebra inferior. Como a pálpebra preserva a pupila cobrindo-a, assim também a esmola preserva a graça, que é como a pupila da alma, por meio da qual a alma vê. É isso que diz Tobias: "A esmola livra de todo o pecado e da morte, e não consente que as almas caiam nas trevas" (Tb 4,11).
Assim como o homem fecha com muita frequência os olhos por um instinto natural, também deve dar esmola com frequência para conservar a graça. A própria natureza lhe ensina e o leva a fazer isso. Diz Jó: "Visitando a tua espécie, não pecarás" (Jó 5,24). A tua espécie, ó homem, é o outro homem: como por inclinação natural provês a ti mesmo, assim deve prover também o outro: "Ama o teu próximo como a ti mesmo" (Mt 19,19). E o homem deve fazer isso porque a película dos seus olhos é mais sutil do que a dos outros animais. A sutileza da película simboliza a compaixão da mente, que é e deve ser maior do que em qualquer outro ser vivo. O animal dá a prova de ser "bruto", isto é, feroz, precisamente porque lhe falta a compaixão.
Diz Moisés: O peregrino, o órfão e a viúva, que estão dentro de tuas portas, comerão e se saciarão, e o Senhor teu Deus te abençoe em todas as obras de tuas mãos» (Dt 14,29); e ainda: "Eu te ordeno que abras a mão para o teu irmão necessitado e pobre, que vive contigo na terra" (Dt 15,11).
Igualmente, o perdão da ofensa purifica a alma dos pecados. Diz. o Senhor: «Se perdoardes aos homens as suas culpas, também o vosso Pai celeste perdoar-vos-á os vossos delitos" (Mt 6,14). Quem faz isso é como a ave, que fecha os olhos com as pálpebras inferiores.
A ave é chamada em latim avis, de a privativo, sem, e vis que soa quase como via. De fato, quando voa, não segue uma via, um caminho. Assim quem perdoa aquele que o ofende não tem no seu coração a via (o caminho) do rancor e do ódio; e fecha os olhos com as pálpebras inferiores, quando, de todo o coração, perdoa a ofensa recebida. E essa é a esmola espiritual, sem a qual qualquer obra boa é privada da recompensa da vida eterna.
Diz o Eclesiástico: "Perdoa ao teu próximo que te ofendeu, e então, quando pedires, ser-te-ão perdoados os pecados. Um homem conserva a ira contra outro homem, e pede que Deus o cure? Não tem compaixão dum homem seu semelhante, e pede perdão de seus pecados? Ele, sendo carne, conserva rancor, e pede que Deus lhe seja propício? Quem perdoará os seus pecados?" (Eclo 28,2-5). "Lembra-te da aliança do Altíssimo" - que diz: "Perdoai e sereis perdoados" (Lc 6,37) -, "e não faças caso da ignorância do próximo. Abstém-te de litígios, e diminuirás os pecados" (Eclo 28,8-10). Não faz caso da ignorância do próximo aquele que atribui a ofensa recebida precisamente à ignorância, e não à malícia: assim finge que não a percebeu e, portanto, não a conserva no coração.
9. Eis, pois, as seis talhas de pedra, tiradas daquela pedra "que os construtores rejeitaram" (SI 117,22), cortada "do monte sem intervenção de mãos humanas" (Dn 2,34). E como estão cheias) «Até a borda" (Jo 2,7), com a água da salvação. "Cada uma continha duas ou três metretas." A metreta era uma medida [de cerca de 40 litros). Nas talhas que continham duas é simbolizado o amor de Deus e do próximo, naquelas que continham três, a profissão de fé na Santíssima Trindade: isso é necessário a todas as mencionadas talhas.
O Apóstolo nomeia, com outras palavras, essas seis talhas na epístola de hoje (cf. Rm 12,11-14). Diz: "Sede fervorosos de espírito": eis a contrição, que é a primeira talha. Presta atenção à palavra "fervorosos". Como as moscas não ousam entrar numa Panela que ferve, assim num coração verdadeiramente contrito não podem entrar "as moscas mortas que perdem o perfume do unguento" (Ecl 10,1). "Alegres na esperança": eis a confissão (a segunda talha). Na confissão, o pecador deve alegrar-se na esperança do perdão, e não menos, doer-se por haver cometido a culpa. "Perseverantes na Oração", eis a terceira talha. «Tomando parte nas necessidades dos santos" (a quarta talha): eis o jejum. Nas necessidades, isto é, no jejum e na abstinência, os santos foram afligidos e atribulados: o mundo não era digno deles (cf. Hb 11,37-38); "nas fadigas [diz o Apóstolo), nas vigílias e nos jejuns" (2Cor 6,5). Mas essas palavras podem também ser aplicadas à esmola material. E de fato acrescenta: "Exercei a hospitalidade", que é a quinta talha. "Abençoai os que vos perseguem; abençoai-os e não os amaldiçoeis", eis a sexta talha, isto é, o perdão as ofensas.
10. "Disse-lhes Jesus: Tirai agora e levai ao mestre-sala (arquitriclino). Quando o arquitriclino provou a água convertida em vinho" etc. (Jo 2,8-9). Encontramos sobre isso uma concordância no Gênesis, quando José, depois de lavado o rosto das lágrimas, diz: Trazei de comer. Depois que a refeição foi servida, à parte para José, à parte para seus irmãos e à parte também para os egípcios. E os irmãos de José beberam e se alegraram com ele (cf. Gn 43,31-34).
"José, filho que cresce e formoso de aspecto" (Gn 49,22) é figura de Jesus Cristo. Cristo foi como o grão de mostarda, de profundíssima humildade, mas depois cresceu e tornou-se uma grande árvore, em cujos ramos moram as aves do céu (cf. Mt 13,31-32), isto é, aqueles que contemplam as coisas celestes. Ele é "o mais belo entre os filhos do homem" (SI 44,3), «e nele os anjos desejam fixar o olhar" (1Pd 1,12). Ele lavará o rosto das lágrimas, como diz Isaías: "O Senhor enxugará as lágrimas de todas as faces" (Is 25,8), quando mudar a água das seis talhas no vinho do gozo celeste; a água da contrição será agora convertida no vinho da alegria do coração. Com efeito, o Senhor promete: "Ver-vos-ei novamente e o vosso coração se alegrará e ninguém poderá tirar-vos a vossa alegria" (Jo 16,22). Então, o coração que agora «é contrito e humilhado" (SI 50,19) será jucundo e alegre pelo vinho da alegria. Diz Salomão: "O coração que conheceu a amargura, o estranho não se misturará na sua alegria" (Pr 14,10).
Igualmente, a água de uma confissão banhada de lágrimas será mudada no vinho do louvor divino. Diz Isaías: "Voltarão e hão de vir a Sião cantando louvores; e uma alegria eterna coroará a sua cabeça; possuirão gozo e alegria; e deles fugirá a dor e o gemido" (Is 35,10), em que se encontravam antes, na confissão de seu pecado.
De maneira semelhante, a água da oração banhada de lágrimas será mudada no gozo da contemplação da Trindade e da Unidade. Sempre Isaías: "Juntos cantarão louvores, porque verão com os seus olhos o Senhor que faz Sião retornar" (Is 52,8).
E também o jejum será mudado na alegria de uma excelente vindima. Isaías: "O Senhor dos exércitos fará neste monte para todos os povos um banquete de manjares deliciosos" etc. (Is 25,6).
E ainda, a dupla esmola, aquela material, e o perdão da ofensa recebida, que é a esmola espiritual, será mudada na alegria da dupla estola, isto é, na glorificação da alma e do corpo. Isaías: "Possuirão na sua terra dupla porção e terão uma alegria eterna" (Is 61,7).
11. Portanto, "José, tendo lavado o rosto das lágrimas, disse: Trazei de comer (Gn 43,31)». É o que diz o Senhor: "Eu preparo para vós um reino, como o Pai o preparou para mim, para que possais comer e beber à minha mesa no meu reino" (Lc 22,29-30). Mas, à parte para José, à parte para seus irmãos e à parte também para os egípcios. É o que diz Mateus: "Quando o Filho do homem vier na sua majestade com todos os seus anjos, sentar-se-á sobre o trono de sua glória. E serão reunidos diante dele todos os povos; e ele separará uns dos outros como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E porá as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda" (Mt 25,31-33).
"Beberam junto com ele e se alegraram." Eis agora o arquitriclino, junto ao qual seremos inebriados da abundância de sua casa (cf. SI 35,9). Arqui, isto é, o príncipe, tri, três, clino, leito: portanto o príncipe de três ordens de leitos: os leitos sobre os quais os antigos costumavam recostar-se para comer. As três ordens de leitos simbolizam as três categorias de fiéis da Igreja: os casados, os castos e as virgens, príncipe dos quais é o bom Jesus: ele "os fará acomodar-se à mesa e depois passará para servi-los" (Lc 12,37).
Irmãos caríssimos, imploremos humildemente a este príncipe que conceda também a nós celebrar as bodas em Caná da Galileia, encher de água as seis talhas, para podermos beber com ele o vinho do gozo eterno nas bodas da celeste Jerusalém.
Digne-se no-lo conceder ele que é bendito, digno de louvor e glorioso pelos séculos eternos. E toda a alma, esposa do Espírito Santo, responda: Amém. Aleluia.
Fonte: Sermões | Santo Antônio; tradução de Frei Ary E. Pintarelli, OFM: Vozes, 2019